Quando a terra acaba e o mar começa…, o céu por limite e destino
Arnold Bröcklin, Ulisses e Calipso (1883)
Navigatio Brendani, Manuscriptum translationis germanicae Cod. Pal. Germ. 60, fol. 179v (UB Augsburg), ca. 1460 Quando a terra acaba e o mar começa…, o céu por limite e destino
Recentemente vieram-me ao encontro dois quadros de Arnold Bröcklin com Ulisses
por tema: um dá-nos a silhueta do herói grego, alheado sobre o mar, vulto negro fechado em si mesmo, costas voltadas a Calipso, a deusa que lhe prometia a imortalidade e o pretendia reter, mas lhe tirava a dimensão humana do sofrimento e a possibilidade de regressar ao contacto com os dias breves e com as alegrias pequenas de uma casa mediana em que tudo ficava dependente do próprio esforço; o outro quadro coloca o herói desnudo, mas também confiante e desprevenido, na fragilidade de suplicante que estende os braços para o oceano a que se entrega, batido pela aragem e inebriado pela voz mansa das ondas, pronto a acolher quem chegue da superfície imensa das águas, mas sem ousar ou sem se preocupar com erguer-se da pedra onde se sentou. Imagem de quem ao mar se entrega por dele esperar um resgate ou uma mensagem de vida?
Que sortilégio tem o mar para atrair ou para reter a atenção e deixar nele fixada a
esperança, quando pela frente não se vê senão água que invade as areias, ondas que galgam umas sobre as outras e deixam atrás a lonjura que só a linha do horizonte recorta ou ventos que tomam de assalto quanto se interna pela superfície fora? O mar é movimento, onde desperta a vida e onde se aprende a recortar a forma imprecisa que se transporta para terra. Como bem disse Sophia de Mello Breyner Andresen:
Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela Ao olhar sem fim o sucessivo Inchar e desabar da vaga A bela curva luzidia do seu dorso O longo espraiar das mãos de espuma… (Mar, p.160)1
Ao longo dos tempos o mar foi vivido como fonte de receios e cúmplice de angústia.
Victor Hugo intitula um dos seus poemas como Oceano nox (a noite no oceano / para o oceano a noite – na ambiguidade latina as duas leituras são possíveis). Como o mesmo título cobriu Antero o seu encontro com o oceano, de onde esperava uma palavra tranquilizadora:
Junto do mar sentei-me tristemente, Olhando o céu pesado e nevoento, E interroguei, cismando, esse lamento Que saía das cousas, vagamente…2
Por vezes é necessário sentir o que se pode esperar do ilimitado para que a finitude
É imenso o espaço que o Oceano abre. Tanto pode ser de receio como de incitamento
a experimentar as forças que as fronteiras da Terra não permitem expandir. A ilusão de uma superfície límpida de água deixa o engodo de uma capacidade de regeneração
1 Sophia de Mello Breyner Andresen, Antologia – Mar, Lisboa, Caminho, 2006 (6ª ed.). 2 Antero de Quental, Poesia Completa, 1842-1891, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001, “Oceano
quando tudo parece esgotado em Terra. Cruzando-se com o Céu, o Oceano, onde o Sol se perde, abre-se como lugar de quietação. Mas é também um espaço sem dimensões definidas: por isso mesmo, é lugar possível de expansão – ao sonho do homem, às suas capacidades de resistência (interior e exterior), à sua renovação pelo distanciamento que cria a dependências alheias. Em contraposição ao céu, a que o homem só pode aspirar por concessão divina, o mar abre-se na distância do olhar na própria dimensão humana e inspira ou predispõe à dimensão do Alto. Mas não exclui a ansiedade nem permite antecipar segurança.
Vem dos antigos uma imagem negativa do mar3. Por ele chegavam os perigos dos
piratas e por isso os louvores de Cícero (no De Republica) iam para a sabedoria dos fundadores de Roma que haviam sabido colocá-la longe da costa marítima; não tão longe, todavia, que não desse aos moradores a possibilidade de se servirem da embocadura de um rio para saírem em busca de refúgio em qualquer situação de perigo vindo do interior das terras ou para reduzirem à impotência os que se atreviam a subir o curso desse mesmo rio sem advertirem no perigo que corriam. Preferindo viver daquilo que os campos forneciam e o comércio local permitia trocar, não deixavam os Romanos de sentir como por via marítima podiam ir em busca de mantimentos que faltavam ou podiam beneficiar do que outros daí traziam para transaccionar no Forum Boarium. Mas, fossem quais fossem os lucros que assim conseguiam obter, em terra ficava a ansiedade por quantos partiam e todos guardavam a certeza de que apenas em terra, e de portas a dentro, conseguiam criar as condições de uma colectividade solidária nos empreendimentos comuns e capaz de fornecer tranquilidade à vida de todos os dias. Segundo a lição da história, o mar permitiu estabelecer poderios a Impérios mais ou menos dilatados, mas sem perenidade, pois até ao próprio Xerxes o mar foi traiçoeiro: os gregos astutos conseguiram tirar vingança do que ele juntara, mas ele apercebeu-se de que a sua derrota começava no Helesponto, quando os cabos da ponte que haveriam de permitir o transporte das suas forças sucumbiram aos baloiços do mar – Heródoto (VII, 34-36) conta que, molestado, Xerxes mandou aplicar ao mar 300 chicotadas e atirar-lhe grilhões como resposta a injúria que não podia perdoar e merecia pena de prisão.
Até, por este episódio em que se revela a hýbris do grande rei, se pode perceber que
o mar se oferece mais como lugar de experimentação de sentimentos humanos que de recursos que dêem vantagem ao navegante. Sente-se a sua variabilidade como caprichos temperamentais e temem-se as suas fúrias. Por seu lado, as tempestades marítimas, centrais nos textos antigos4, servem menos para comprovar as qualidades de chefe no herói que para demonstrar que ele é objecto de protecção divina que lhe permite chegar ao termo de uma viagem e cumprir a missão que lhe está destinada.
Há na relação com o mar uma contínua sensação de incerteza em todos quantos a
ele se entregam. E se, no final, por vezes, há um canto heróico para celebrar quantos foram capazes de vencer as fúrias das ondas, em bom número de casos, é a frustração da inutilidade dos esforços feitos e o reconhecimento magoado da fragilidade dos meios que só pode terminar em lamento de morte. Os relatos da nossa História Trágico-marítima são exemplares quando nos colocam perante a “confusa ordem em que a
3 Robert Ballard et Toni Eugène, Les mystères des navigateurs de l’Antiquité – Les premières civilisations maritimes, Paris, National Geographic, 2005.
4 Embora preparado para outro enquadramento, apraz-me recordar aqui, em homenagem póstuma, o
trabalho, que teve origem em sugestão nossa, para o Colloquium Didacticum Classicum de Bari, realizado por Fernando Lemos, Tempestades épicas – Vergílio, Ovídio, Homero, Camões, Ariosto, Lisboa, Colibri, 1997.
desventura tinha tudo aquilo desordenado” – como se lê nalguma parte da edição de Bernardo de Brito5). São os destroços físicos símbolo da desfiguração interior que apenas na sublimação de uma causa maior pode encontrar sentido. Mais custa a suportar o vazio de nada poder abarcar quando tudo soçobra nas profundezas das águas revoltas. O referido poema Oceano nox de Victor Hugo (a que Antero recorria) é bem representativo das ilusões desfeitas nas perdas sofridas como resultado da entrega ao mar:
Oh ! combien de marins, combien de capitaines Qui sont partis joyeux pour des courses lointaines, Dans ce morne horizon se sont évanouis ! Combien ont disparu, dure et triste fortune ! Dans une mer sans fond, par une nuit sans lune, Sous l'aveugle océan à jamais enfouis ! 6
A morte pairava constantemente no horizonte e por isso não surpreende que menos
positiva tenha sido sempre em tempos passados a relação estabelecida com o mar. De desconfiança pelo perigo que constituía era sobretudo a relação com o Grande Mar Oceano, extensão larga, envolvendo a Terra, mas do qual, durante séculos, nada se sabia a não ser que tinha algumas ilhas imprecisas, envoltas em mistério (tanto maior quanto a exploração de eventuais riquezas acarretava um sigilo que reservava o acesso a alguns que fossem autorizados a utilizar os conhecimentos alguma vez obtidos e conservados na memória – raramente passada a registo escrito e sujeita nesses casos a ter detractores7).
Por isso, a Hércules, domador de monstros, atribui a Antiguidade o mérito de ter
colocado no extremo das terras as Colunas que serviam para delimitar o ponto que era fatal ultrapassar. Nem ele próprio ousou seguir além e apenas se permitiu na ponta norte do Finisterra construir uma Torre para estender mais longe o olhar. Regressou Hércules ao seu ponto de partida, pois até a ele assustava qualquer aventura marítima. Os cálculos científicos de Eratóstenes (em inícios do séc. II a. C. – ca. 192 a.C. é a sua morte) serviram-se desse ponto extremo no ocidente para formarem o arco do horizonte que tendo o ponto central em Alexandria tinha o correspondente em lugar simétrico de quanto os viajantes apontavam para oriente e formava o espaço da ecúmena, onde era tranquilo habitar. A vinda até esse ponto extremo do Mar é para Héracles desempenho de trabalho imposto: nada tem de trazer desse Mar, porque de nada havia notícia que lhe dissesse respeito, nada ele espera aí colher o herói e não é aí que ele procura novos horizontes. Nas suas andanças, delimita o mundo antigo e mede a sua própria limitação – sem a ultrapassar. Capaz de vencer forças contrárias, confronta-se consigo mesmo ao deparar com o desconhecido.
5 Historia tragico-maritima : em que se escrevem chronologicamente os naufragios que tiveraõ as naos de Portugal, depois que se poz em exercicio a navegaçaõ da India, por Bernardo Gomes de Brito, Lisboa Occidental : na Officina da Congregaçaõ do Oratorio, 1735-1736. História Trágico-Marítima (Análises e Perspectivas), Maria Alzira Seixo e Alberto Carvalho (org.), Lisboa, Cosmos, 1996.
6 Victor Hugo, Les Rayons et les Ombres, XLII, 1840 (escrito em Julho de 1836). 7 Píteas de Marselha terá sido dos poucos nessas circunstâncias (talvez como uma espécie de
praemissus explorator, como fora Onesícrito que Alexandre enviara, segundo Séneca (Ben., 7,2,5) para explorar o mundo para além das fronteiras habituais – por 340 a.C., mas o próprio Estrabão, que dele dá testemunho, não deixa de o acusar de fantasioso (I, 4); obviamente para um homem do Mediterrâneo a descrição do “mar intransitável”, de “marés em sincronia com as luas”, de “noites que não duravam mais que duas horas”, etc., não podiam tornar-se credíveis para os seus leitores. Cf. Ferdinand Lallemand, Journal de bord de Pythéas de Marseille, Paris, 1956 ; R. Dion, Aspects politiques de la géographie antique, Paris, 1977.
Admiramos a racionalidade dos Gregos e apercebemo-nos de quanto é limitada essa
racionalidade que tudo quer medir e por isso corre o risco de se circunscrever no raciocínio que se baseia na autoconfiança. A outra dimensão, porém, nos leva o mito de Ulisses – o astuto que sabe medir-se com o inesperado. Segundo a imagem dos poemas homéricos, ele é fundamentalmente um navegante ansioso por regressar à sua pátria, mas perdido no mar e sujeito a um conjunto de peripécias que dilatam por dez anos esse regresso; em perspectiva complementar, ele é também na Odisseia aquele que ousa ultrapassar os limites do humano, embora permanecendo nele – quando desce aos Infernos; é igualmente aquele que experimenta também a fragilidade do humano, quando assiste à conversão dos seus companheiros em animais. No poema, falta-lhe ultrapassar os limites do horizonte geográfico, embora seja o herói que, pelo engenho, se contrapõe aos heróis que lutam de armas em punho. Ora, em versões tardias do mito odisseico, interpretadas por Estrabão e lidas pelos nossos humanistas, Ulisses deixa o quadro do Mediterrâneo, dobra o Sacro Promontório e, desafiando as fúrias do Mar Atlântico, ruma para Norte (que poderá chegar a horizontes germânicos na pena de Tácito). Assenta arraiais na embocadura do grande rio ocidental, o Tejo, e aí teria ficado, glosam os medievais, se, envolvido em amores com a filha do rei da terra, as saudades o não tivessem vencido e levado a regressar.
O desenho desse percurso (tanto quanto podemos acompanhar o horizonte do mito),
ocorre ao ritmo de uma ocupação que se pretende legitimada em acções de domínio da terra e vai buscar à figura mítica dos limites, a Ulisses, o patrono heróico (com deslocações que têm de reajustar-se no périplo tradicional que lhe é atribuído). O geógrafo Estrabão lê Homero ao revés e escreve que “a expedição de Ulisses realizada até à Ibéria, justamente com a passagem por aí de Hércules e dos Fenícios deram-lhe [a Homero] a base histórica para construir a Odisseia ao modo como tinha construído a Ilíada, embora convertesse a história em mito, como é próprio de poetas” (Geogr. 3,2,13). Um pouco depois, o mesmo Estrabão (Geogr. 3,4,4) sossega algum leitor menos habituado a transposições: “não é de admirar que o poeta [Homero] descrevesse as viagens de Odysseus de uma maneira fabulosa e admitisse que a maior parte das suas façanhas tinham sido levadas a cabo para além das Colunas, no Atlantikón Pélagos; não forja ele um conto fantasioso, pois os lugares e demais circunstâncias por ele referidas em pouco diferem das dos historiadores”.
Que ocorreu, entretanto, para que as viagens de Ulisses fossem projectadas sobre o
Atlântico, quando anteriormente elas se desenrolavam no Mar Interno / Mediterrâneo? O horizonte dilatara-se; o homem mediterrâneo ganhara confiança em si próprio. Que voz se fizera ouvir? A da audácia da conquista e da ocupação de novos assentamentos, por acções de domínio político. Tanto quanto nos é dado saber pelas fontes antigas, em 137, a.C., Décimo Júnio Bruto toma conta da região ocidental. Por uma assonância de nomes, o de Odysseus / Ulisses reajusta-se ao de Olisipo e tanto basta para que as aventuras do herói grego dos limites sejam prolongadas até estes novos horizontes. O processo de apropriação mítica convém aos novos senhores, já que na evocação ganham dimensão do engrandecimento das gestas recentes8.
Assim, no seguimento das campanhas de dominação da Península Hispânica, as
antigas legendas passam a ter novo conteúdo: o território outrora dominado por Gérion e subordinado por Hércules fica sujeito aos novos senhores do mundo; estes assumem-se como promotores de concordia populorum e não apenas da concordia ordinum da Urbe; as Colunas de Hércules são agora referência funcional que enquadra uma acção e lhe dá sentido por antecipação; não são apenas ornamentais, pois enquadram uma longa
8 Aires A. Nascimento, Ulisses em Lisboa: mito e memória, Lisboa, Academia das Ciências, 2006.
duração de actuações lidas como série que no passado busca títulos de glória. A acção histórica e, particularmente, as gestas de conquista são celebradas pelos heróis que evocam; as referências míticas são integradas e reinventa-se o mundo antigo em função dos novos assentamentos. Os lugares são reajustados também em função de novos horizontes. Assim acontece com a cidade de Odysseia: em tempos míticos situava-se ela no Sul da Hispânia e dava pretexto para admitir que Ulisses, o herói dos limites reconhecidos, chegara aos confins ocidentais do mundo antigo, completando assim o périplo de viagem que começara no extremo oriental; por essa mesma razão, ao alargar-se o horizonte, Odysseia é transferida para o assentamento último, quando os Romanos se assumem como os senhores do mundo e aí se estabelecem. Olis(s)ip(p)o, qualquer que tenha sido a sua origem, é integrada em nova soberania e a assonância de nomes permite entendê-la como novo limite e conceder-lhe nova dignidade.
É a pacificação e a integração da terra vizinha ao mar que se vai repercutir numa
nova relação com ele. O mito, narrativa de sucessos grandiosos, dá ao homem a dimensão que a circunscrição geográfica lhe tolhe. Ao tempo, não é ainda o mar largo e imenso que serve de referência. Porém, as Ilhas dos Bem-aventurados, estavam, de há muito, no horizonte de uma literatura que vinha de longe e tinha já em Hesíodo as primeiras referências literárias de um mundo em expansão, embora envolvido no sigilo de uma distância cujo acesso ficava reservado. Os fenícios, que em algum ponto do mar imenso haviam deixado evocações de Melkart / Makart, sua divindade maior, estarão na base de uma designação que, mal aferida, deixou no homem grego o sonho de uma Terra Feliz, onde o convívio com os Imortais daria, ao menos aos heróis, um lugar de felicidade escatológica. As Ilhas dos Bem-aventurados, as Makárôn Nêsoi, haviam entrado assim no imaginário dos gregos e permitiam que o Mediterrâneo, “mar cavado entre montanhas, uma chanfradura que liga as três partes do Velho Mundo” (na expressão de Orlando Ribeiro), se dilatasse pelo Mar imenso. No entanto, sem referências, que farão os homens, habituados a viver “como formigas ou rãs em volta de um charco”, para guardar a expressão platónica (Fédon, 109b)?
O homem grego ou romano, mesmo que temeroso do mar, conhece todas as pregas
das rochas costeiras de um mar interior, mas sente-se incapaz perante o mistério do mar largo que não lhe dá limites definidos nem referências de orientação. Em algum momento, por desespero de situação política, abre-se o anseio de que, ao menos, em alguma parte do mundo, haja um lugar para o repouso das lutas entre rivais de um mesmo povo. Em nova leitura, as Ilhas dos Bem-aventurados, cuja designação anda por Plauto (Trin., 549), situadas agora para além das Colunas de Hércules, ganham a dimensão de um ponto de refúgio para quantos ambicionam escapar a momentos de fúria bélica de uma guerra civil que reabre feridas antigas; aí se teria refugiado Sertório (Plut. Sert. 8. Flor. 3, 22) e aí augurava Horácio que houvesse uma réstia de esperança para uma nova idade (Ep. XVI).
O mar ganhava assim dimensão humana à medida que a terra se torna escassa para
acolher os sonhos que se iam abrindo. Mas que ficava para além de uma necessidade de evasão num que mundo se contraía em volta de um centro de gravidade que incidia mais fortemente sobre o Mediterrâneo, pois para Roma convergiam as atenções, mesmo quando os bárbaros atravessavam as fronteiras?
O confronto com o mar imenso traz sentimentos desencontrados e tão contraditórios
como os da água que tanto sepulta como regenera ou tanto separa como abre à distância.
No mar se refugiam os eremitas que desesperam por encontrar o deserto, onde os
monges primitivos se internaram para experimentar a sua decisão de fuga ao mundo a
fim de se entregarem à contemplação do divino. Nas ilhas Mediterrânicas, em Lerinas / Lérins, não muito longe da costa, em finais do séc. IV, se refugiaram os contemplativos do Sul da Gália, Honorato e seus seguidores – num palmo de terra para ninguém lhes cobiçar o ermo, suficientemente longe para não serem percebidos, mas suficientemente perto para se deixarem incomodar com a falta de correspondência dos seus irmãos que tinham deixado por perto e aos quais havia que convencer que um palmo de terra bastava para tomar voo para o céu.
No imaginário europeu, contudo, iria prevalecer a experiência de uma outra terra, a
da Irlanda, vagamente conhecida pelos romanos como Hibernia, pois lhe preferiram a Britania, mais vasta e mais prometedora em recursos. É particularmente a Irlanda que, perdida nos confins da Europa, recolhe e renova a grande tradição do monaquismo greco-oriental, num recanto que escapa às invasões bárbaras e se abre à nova experiência de o encontro das velhas raízes com o cristianismo que lhe é anunciado: segundo o cronista Próspero da Aquitânia, teria sido o papa Celestino I quem em 431 envia o diácono Paládio como primeiro bispo à Irlanda / Hibérnia; o herói dessa evangelização passa, no entanto por ser Patrício (432-462), um jovem da Bretanha insular que para a ilha ocidental é conduzido depois de ter sido capturado por piratas escotos. É nesse contexto que surge uma narrativa de autêntica literatura fantástica, em que terra e mar com o céu por protecção se fundem e se tornam lugar para as aventuras de um monge fundador e emblemático, Brandão.
Este não é personagem de lenda, mas um abade que no séc. VI deixou fama das suas
aventuras marítimas, possivelmente de evangelização, nas ilhas da costa irlandesa. Pertence a uma família da aristocracia local e recebe uma educação esmerada no convívio com os clérigos que lhe ensinam as letras e as ciências, mas não descuida também uma formação capaz de enfrentar as necessidades da vida, na caça e na pesca, ao mesmo tempo que procura certificar-se de que o céu fica ao seu alcance nos horizontes que o mar lhe proporciona e a terra lhe nega. Bem cedo fica à frente de uma comunidade monástica e parte com alguns monges para a Armórica, num momento em que os bretões, escorraçados pelos invasores saxões atravessam a Mancha para se instalarem justamente no continente. Brandão divide o seu tempo entre o País de Gales e a Armórica; instala-se em Alet, pequena localidade próxima do que seria mais tarde Saint-Malo. Por 561 funda ele o mosteiro de Clonfert no condado de Galway / Connacht, no centro-oeste da Irlanda. Com os seus monges teria ele sulcado os mares. A dispersão das suas viagens, ao menos no domínio da ficção, confere-lhe o direito à primazia de se ter deslocado em todas as direcções, descendo até às Ilhas Canárias, no Sul, chegando à Terra-Nova e às Antilhas para Ocidente, rumando até à Islândia para Norte, antecipando-se a Colombo e até às navegações dos Viquingues (quatro séculos antes destes). O seu nome ficou na cartografia mais antiga e por muitos bons anos a Ilha de São Brandão figurou nos mapas que se foram sucedendo, como ponto de mira num Oceano demasiado largo para se poder considerar conhecido e como desafio a todos os aventureiros de maior temeridade, pois a eles se comprometia o rei de Portugal a dar tal ilha desde que fosse encontrada. Entre sonho, mistificação e aventura marítima se entreteceu o imaginário dos Descobrimentos e por isso não nos causa incómodo que Gomes Anes de Zurara, um homem de gabinete, desdenhasse das fantasias antigas porque podia contrapor-lhes os relatos dos navegadores do senhor Infante, mas que este, por seu lado, pudesse servir-se da hagiografia para estimular os seus homens a irem sempre mais além naquilo que ficava sem limites certos na imensidão dos mares.
Da narrativa que correu com o título de Navigatio Brendani conhecem-se hoje quase
duas centenas de manuscritos medievais, número largo que diz bem da difusão de um
texto entre finais do séc. X até ao séc. XV. Menos sabemos de período anterior, mas uma reconstituição suficientemente fundamentada faz remontar a versão mais divulgada a uma data que remonta ao ano 796, dando, por outra parte, como praticamente adquirido que a redacção terá tido lugar na região do Reno, no interior de uma comunidade insular deslocada para essa região.
O texto tem, contudo, uma história mais antiga e não perdeu a imagem de toda uma
comunidade monástica voltada para uma experiência marítima assumida como emblemática do seu próprio percurso de vida claustral, feito de tramos sucessivos entre ilhas e acompanhado de sucessivas manifestações de protecção divina por entre perigos constantes.
De facto, refazendo o curso da versão e ajustando testemunhos, aparece um grupo de
manuscritos que se destacam do conjunto e revelam uma redacção primitiva relativamente àquela que se veio a difundir numa área transpirenaica9. Os dois testemunhos mais completos desta versão, e que se complementam, fazem parte da tradição portuguesa dada por Santa Cruz de Coimbra e remontam ao séc. XII / XIII, mas deixam pressupor tradição mais antiga10. O grupo, no total, não vai além de seis testemunhos e parece tão marginal que houve quem, de entre os melhores conhecedores da tradição, tivesse hesitado em considerá-los erráticos e derivados da versão admitida.
A conclusão diferente nos levou uma análise textual de pormenor quanto à narrativa
e ao significado subjacente a essas variantes. De facto, a figura do Abade à frente da comunidade monástica apresenta traços diferenciados numa versão e noutra e os reajustamento da rescrita são perceptíveis na versão centro-europeia por relação à que é dada pela versão hispânica: enquanto nesta, o abade é um primus inter pares que apenas age segundo o que a unanimidade dos monges demonstra ser a vontade divina, na outra ele é quem toma as decisões fundamentais. Os reajustamentos de redacção permitem-nos verificar o sentido da deriva e concluir que à Península Hispânica chegou a qualquer momento da sua primitiva história a versão original que no centro-europeu foi abandonada por se lhe ter sobreposto a nova versão criada em ambiente monástico carolíngio, em que a organização monástica passa a ter novo modelo.
Tanto nos basta para aceitarmos que as relações entre a Península Hispânica com as
Ilhas Britânicas se confirmam também por este texto e para reconhecermos que nele se projectava o modelo monástico que perdurou entre nós e que o mar era visto em perspectiva de espaço aberto a experiência espiritual. A particularidade de os dois testemunhos estarem em Santa Cruz de Coimbra e não em Alcobaça pode (e talvez deva), além disso, ser interpretado como significativo de que o modelo cisterciense não se revia nessa versão primitiva em que a experiência monástica é mais de convergência de singularidades de monges que de decisão de um superior para a prática uniforme dentro da comunidade. Na verdade Alcobaça apresenta uma outra versão derivada da que se atesta além Pirenéus, por mão de Benedeit, autor que escreve para Matilde ou Adeliza, esposa de Henrique I, Plantageneta, rei de Inglaterra no início do séc. XII.
Há na variância do texto adaptação a situações e depreende-se das versões ou
rescritas uma funcionalidade textual que foge aos esquemas normais de preservar a identidade do texto na sua transmissão. Facto é que, quando os textos entram na comunidade textual e esta os assume como seus, eles têm de ser avaliados em
9 O trabalho mais recente em que tivemos oportunidade de apresentar mais demoradamente a nossa
análise perante autoridades do maior crédito é: “The Hispanic Version of the Navigatio Sancti Brendani: Tradition or form of reception of a text?”, in The Brendan Legend – Texts and Versions, edited by Glyn S. Burgess & Clara Strijbosch, Leiden / Boston, Brill, 2006, pp. 193-220.
10 Constam da nossa edição : A Navegação de S. Brandão nas fontes portuguesas medievais (Navigatio Brendani - I; Benedeit, Navigatio Brendani - II; Trezenzonii De Solistionis Insula magna; Conto de Amaro) – ed. crítica, tradução, introdução e notas de comentário. Lisboa, Colibri, 1998.
perspectivas de funcionalidade que interpelam a identidade dos leitores mais que a identidade dos autores e mais que fidelidade a uma versão de base há que interrogar o valor de significação tomado pela deriva.
Desse modo interessa pouco a correspondência do texto com uma realidade exterior
que lhe dê suporte na origem, pois sobre ela prevalece a motivação ou intencionalidade posta na transmissão e na leitura que se lhe possa sobrepor e levar a mensagens novas. Se interessa perceber como o texto primitivo foi construído (a análise pode até reconstituir elementos fundidos), a unidade de leitura, dá-lhe o significado subsistente para lhe permitir continuidade. De facto, por muito que os dados sejam difíceis de determinar e até haja que tomar todas as cautelas que resultam de haver contaminações nas versões que se conhecem de supostas fontes, analiticamente há que reconhecer que a Navigatio Brendani não surge do nada, faz parte de um conjunto de narrativas em que se encontra a Viagem de Bran ou a Viagem de Maelduin. O mar está nelas presente como meio em que se desenvolve uma experiência; o que a Navigatio apresenta de próprio é uma tensão escatológica que se sobrepõe à simples aventura marítima. Seja qual for o “efeito do real” que nessas narrativas se atravessa, nelas o esquema é similar e serve para alimentar vivências em torno das aventuras fantásticas de homens que se deslocam de ilha em ilha, não em busca de sustento, mas em demanda de uma novidade que escapa à envolvência de todos os dias. A Navigatio Brendani acrescenta um pólo fundamental que é o da vida monástica expressa como aventura marítima, cheia de perigos, na demanda da Promessa bíblica.
Não falta quem queira aproximar da literatura oriental alguns dos episódios do texto
brandaniano (assim as aventuras de Sinbaldo, o Marinheiro, escrita pelo séc. X), mas nada mais se pode concluir do que pelas semelhanças sem possibilidade de marcar dependências. Também o fundo das literaturas clássicas pode ter fornecido materiais para essa narrativa irlandesa: a procura do Hades, na Eneida, seria sugestiva sobretudo para quem se deliciasse em encontrar traços de leituras que permaneceram ao longo dos tempos e se renovaram em momentos mais marcados da cultura europeia. Nem falta quem faça aproximações com um conjunto de literatura de visões, bíblica ou não, onde se podem perceber semelhanças. As lições da erudição acabam, não raro, por confundir, quando ofuscam ou quando criam antolhos. Valem, porém, para demonstrar como a génese de um texto não é espontânea. Não o sendo, permitem julgar da pertinência na conjugação de dados e da sua motivação. Uma coisa e outra servem para perceber o interesse histórico por um texto que, construído num ambiente específico – demonstrado pelos elementos referenciais, acaba por concitar atenções pelo significado que as próprias variantes registadas na tradição hão-de desvendar.
A narrativa da Navigatio Brendani, em si, é clara e simples: sob o modelo de uma
viagem, monta-se uma expedição cheia de episódios e iterações na demanda do Paraíso; a complexidade vem do emaranhado do percurso que, longe de ser linear, se centra no regresso iterado a um mesmo local, de natureza surpreendente e equívoca (o dorso de uma baleia que se move) até um desenlace de chegada frente a um lugar inatingível, depois de ultrapassada toda uma série de provas, a última das quais se defronta com a figura de Judas, que, por antífrase, deixa adivinhar a proximidade de um fim feliz reservado aos que sabem ser perseverantes como o ermitão Paulo que surge na ilha seguinte. A simplicidade vem de estruturas similares em que tudo se vai sucedendo como num conto fantástico em que tudo se resolve por encanto. O próprio esquema de tempo é previsível, pois obedece ao ritmo litúrgico. Aos tempos juntam-se as motivações que se coadunam com as da vida monástica e se apresentam como encaminhamento para um termo escatológico que é o da felicidade prometida a todos quantos forem eleitos e perseverarem, não obstante algumas tribulações.
Quaisquer que sejam os motivos literários utilizados na Navigatio Brendani, o tema
fundamental é o da procura da felicidade pela viagem à Terra Prometida, ao Paraíso. Para os monges isso era o objectivo da sua retirada / fuga ao mundo. Fazer de uma perspectiva escatológica um objectivo materializado geograficamente pode parecer, e é, estranho, segundo uma concepção teológica depurada. No entanto, a imagem do Homo viator é característica de um tempo em que a vida se orienta para a Parúsia e se busca a sua antecipação: o monaquismo assenta nessa dinâmica11. Por outra parte, em todos os tempos, a retórica se serviu da “composição do lugar” que, mesmo quando deixada a factores de ficção, cria verosimilhança e credibilidade.
Situando a demanda no mar e dando à viagem o sentido do Ocidente, a Navigatio
procedia ao arrepio da tradição consagrada na Bíblia. Efectivamente, segundo esta, o Paraíso ficava bem no centro da Terra e situava-se a Oriente.
Ora, fixando o lugar dele no mar, estabelecia-se uma ruptura com o padrão bíblico,
mas recuperava-se o significado de dois símbolos fundamentais do imaginário e da sacramentalidade cristã: a água, como elemento regenerador, o barco como elemento mediador de salvação. A própria comunidade que entra no barco, mais que o resto de um povo que escapa a uma condenação (como o que entrou na Arca de Noé), representa as primícias de um toda uma comunidade que ficou na expectativa da salvação que os outros vão confirmar ao longe12.
Por outra parte, poderia parecer, pelo relato de Babel, que, quando os homens se
deslocavam para Ocidente, surgia o perigo de acto de rebeldia contra a divindade; a Torre, que antes era de comunicação entre os deuses e os homens, constituía-se em avatar de concorrência ao poder soberano da divindade e por isso de ruptura entre as duas instâncias. Ora, não será demais acentuar que, se o centro é um ponto extremamente simbólico (enquanto para ele faz convergir a dinâmica de uma acção) 13, esse ponto pode encontrar-se em qualquer parte e próprio do sagrado cristão é deslocá-lo para qualquer parte onde o homem tenha acesso, já que o lugar do culto está na dimensão aberta pelo coração do homem e, segundo uma concepção que vem do fundo dos séculos e é atribuída a Hermes Trimegisto, Deus é uma esfera cujo centro está em todo o lugar por modo infinito e a circunferência não está em parte alguma14.
Encontramos, efectivamente, alguns momentos, em que a sensibilidade cristã não
hesita em transportar para Ocidente o Paraíso: Venâncio Fortunato, no séc. VI, dirigindo-se a Martinho de Braga não hesita em considerá-lo como novo Adão situado em novo Paraíso no ocidente. Cumprimento de gentileza? Sem dúvida. A verdade é que a tradição das Insulae Fortunatorum que situava a Ocidente uma Terra / Ilha de Bem-aventurança pode ter exercido a sua influência.
A Navigatio Brendani não é o único texto que nos nossos meios acentua essa
perspectiva. Num pequeno texto, que dá pelo título de De insula magna solistionis (Ilha Magna do Solstício) e que, na versão alcobacense que nos chegou, remete para um autor de nome singular, como é o de Trezenzónio, há também uma aventura que se inicia na Torre de Hércules e se dilata por uma viagem a uma pequena ilha, a ocidente, onde por alguns dias, o protagonista tem acesso a uma experiência celestial, mas de onde é
11 “Viator e Peregrinus: Registos da construção da viagem”, in Homo Viator - Estudos em homenagem a Fernando Cristóvão, Lisboa, Ed. Colibri, 2004, pp. 173-188.
12 Cf. Jean Daniélou, Les symboles chrétiens primitifs, Paris, Seuil, 1961. 13 Cf. Gerard de Champeaux / Dom Sébastien Sterck, Introduction au monde des symboles, La Pierre
14 Cf. Joaquim de Carvalho, “Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara”, in Obras Completas,
Lisboa, F. Gulbenkian, 1983, pp. 190 ss.
obrigado a retirar por imperativo angélico15. O contexto em que a narrativa se coloca (de tempos de Reconquista e de lugares à beira-mar), leva a admitir como quadro operativo para a manutenção destas legendas, o de momentos de tensão que lançam sobre o horizonte liberto, que especificamente é o do mar, a possibilidade de encontrar a resolução de anseios. Sem fugas, porém, à realidade, mas como meio de revitalização de recursos que se vão exaurindo. Trezenzónio é obrigado a regressar e depara com a terra renovada e à espera de novos reforços quando, trezentos anos antes, a deixara devastada e sem esperança. Se tomarmos em conta quanto nos diz o texto, a situação passa pelo séc. X, o que deixa entender como também em projecção sobre o mar (e não apenas sobre as montanhas das Astúrias) se reanimaram as esperanças de recuperação da terra que se havia perdido. A interpretação não é tão gratuita como poderia parecer, por ingénua, se tomarmos em conta quanto lemos em narrativas que se prolongam por mais tarde e nos dão conta de legendas como a do rei Rodrigo refugiado a ocidente, a das Sete Cidades, onde se estabelecem os sete bispos que fogem à moirama e são reencontrados pelos homens do Senhor Infante, mas cuja localização perdem de memória16. Como nos contos mágicos, tudo se dissolve quando em 1492 cai Granada e Colombo se aproxima do Paraíso, a Ocidente, ficando por resto, para os leitores mais ocidentais, o sonho de chegar à Índia, onde a Utopia do Paraíso sobre a terra parece viável e onde os novos heróis terão a recompensa na Ilha dos Amores (imaginada por Camões), uma vez conseguido um conhecimento que revela a harmonia mundi, prenúncio de uma gloria futura, não já mítica, mas escatológica (porque, afinal, os mitos não mais que ficção para dizer o que as palavras não são conseguem – como também o nosso épico havia de recolher das palavras de Tétis na celebrada ilha – X, 82).
É pequeno o texto da Navegação de Brandão, mas alonga-se a duração por vários
anos: sete, para perfazer um ciclo completo; tem, por outra parte, um desenvolvimento
15 Cf. a edição que dele fizemos em Navegação de S. Brandão nas fontes portuguesas medievais,
16 Encontramos a lenda em várias fontes, uma das quais em Fernando Colombo, quando discorre sobre
as razões que decidiram o Almirante, seu pai, a aventurar-se à descoberta para Ocidente. Cf. Le Historie della vita e dei fatti di Cristoforo Colombo per D. Fernando Colombo suo figlio, cur. Rinaldo Caddeo, Milão, 1930, cap. IX: Havia uma ilha que alguns portugueses colocam nas suas cartas com o nome de Antília, ainda que não coincidisse a sua localização com a de Aristóteles [no livro das coisas naturais maravilhosas], mas nenhum a colocava mais de duzentas léguas para Ocidente relativamente às Canárias e à Ilha dos Açores. Asseguram que é a Ilha das Sete Cidades, povoada pelos portugueses no tempo que ao rei Rodrigo foi tomada a Espanha pelos mouros, ou seja, no ano de 714 do nascimento de Cristo. Nesse tempo, dizem, embarcaram sete bispos e com a sua gente e navios chegaram a essa Ilha, onde cada um deles assentou uma cidade; e a fim de os seus não mais pensarem regressar a Espanha, queimaram os navios e todas as enxárcias e outras coisas necessárias para a navegação. Pronunciando-se, depois, alguns portugueses a respeito desta ilha, havia quem afirmava terem ido até ela muitos portugueses, os quais não foram capazes de regressar correctamente. Dizem nomeadamente que em vida do Infante Dom Henrique de Portugal aportou casualmente a esta ilha de Antília um navio do Porto de Portugal; desembarcada a gente em terra, foram pelos da ilha conduzidos ao Templo para verem se eram cristãos e se observavam as cerimónias romanas; vendo que as observavam, rogaram-lhes que não partissem até que chegasse o seu senhor que se encontrava ausente, o qual lhes faria muito agasalho e lhes daria muitos presentes. A isto imediatamente todos eles queriam atender, mas o capitão e os marinheiros temeram ficarem ali retidos, pois duvidavam que aquela gente não quisesse ser conhecida e por isso lhes queimasse o navio. E assim partiram de regresso a Portugal, com esperança de serem recompensados pelo Infante. Este repreendeu-os severamente e ordenou-lhes que imediatamente ali voltassem, mas o capitão, com medo, fugiu com o navio e com a gente para fora de Portugal. E diz-se que quando na ilha os marinheiros estavam na igreja, os criados do navio recolheram areia para a cozinha e reconheceram que um terço dela era ouro fino.
cronometrado e medido: segue o desenrolar do ano litúrgico e apresenta ao todo, no corpo central, 12 unidades narrativas, correspondentes a doze estações de viagem17.
1. Barinto, abade, conta a Brandão como, através de uma viagem que o conduziu longe no oceano,
chegou à Ilha do Paraíso, a Terra Prometida.
2. Preparativos da viagem: escolha de companheiros; jejum de quarenta dias de preparação;
3. Partida: peripécia de admissão de três monges anteriormente não contemplados na escolha.
1. Chegada a castelo desabitado: um dos monges adventícios é surpreendido em furto, reconciliado, mas perde a vida.
2. Abastecido por mensageiro divino, Brandão continua viagem até à ilhas das ovelhas: celebração da Páscoa no dorso da baleia Jascónio.
3. Chegada à ilha dos Pássaros – anjos caídos, mas sem pecado de orgulho; revelam a Brandão que terá de continuar viagem durante mais seis anos.
4. Ilha do monge Ailbeu: maravilhas reveladas pelo abade: água quente para a higiene; luzes automáticas para a noite…
5. Ilha dos sargaços: os monges caem em prostração de sono por terem bebido de fonte proibida; o barco é atingido por calmaria e não pode avançar.
6. Ilha das ovelhas, novamente: aproxima-se a Páscoa e de novo sobem ao dorso de Jascónio, que se apresenta como nova ilha. Ataques de monstros marinhos, em que uns se aniquilam aos outros (sinal de protecção divina).
7. Ilha dos louvores divinos: um dos monges adventícios fica nessa ilha.
8. Ilha de frutos deliciosos, atravessada por seis ribeiras: abastecimento do barco. Ataque de um grifo, mas este é morto por outro (protecção divina)
9. Ilha de Ailbeu: celebração do Natal. Regressados ao mar, na festa de S. Pedro, os peixes acumulam-se em torno do navio, atraídos pelos cantos dos monges; numa coluna de gelo (iceberg), descortinam uma patena e um cálice.
10. Aproximação da Ilha dos Ferreiros (antecipação do Inferno) e sentem os efeitos. O terceiro dos monges adventícios desaparece numa ilha coberta de nuvens.
11. Rochedo de Judas: este conta os seus tormentos.
12. Ilha do ermitão de idade avançada: Paulo conta a sua vida solitária, antecipação da vida bem-aventurada e exemplo da protecção divina.
C) Chegada. 1. Encontro com um guia que deve guiá-los ao Paraíso. 2. Gozo fugaz da glória celestial, que não pode ser gozada nesta vida. 3. Visita à ilha do Paraíso. D) Epílogo. Brandão regressa e conta aos seus monges, que ficaram em terra, a sua felicidade.
Estrutura tão definida, que se desenrola segundo ciclos simbólicos, chama
necessariamente a atenção e obriga a reconhecer-lhe uma intencionalidade. Seria pouco que se ficasse pelo lúdico para preencher momentos menos tensos da vida monástica ou servisse ao abade, responsável da comunidade, para lembrar aos súbditos que ele era detentor de uma autoridade que não podia ser posta em causa. É certamente um texto de iniciação que serve para revelar a vida monástica. Como tal enuncia perigos, garante a estabilidade monástica, aponta a sacralidade da função abacial – que resolve tensões, reanima nos momentos de desânimo, conduz ao encontro com outras comunidades monásticas, leva os seus súbditos pelo caminho certo, superando as dificuldades que se atravessam no caminho, sendo o garante da protecção divina que a ele se revela ao longo dos dias.
A versão mais antiga da Navigatio acentua mais que a derivada como a
responsabilidade da experiência pertence a toda a comunidade monástica. Mas tanto uma como outra mantêm o mar como o espaço de prova: a constância e a fidelidade são
17 Divergimos algum tanto do esquema apresentado por Pierre Bouet, Le fantastique dans la littérature latine du Moyen Âge – La navigation de saint Brendan, Caen, Université, 1986.
exigência a que nenhum dos que foram admitidos no barco se pode recusar; a interpretação dos sinais cabe apenas a um; a admissão à demanda é acto da graça, a que ninguém se pode presumir merecedor (os três que forçaram a entrada no barco foram excluídos, cada um a seu tempo, ao longo da viagem); a contemplação que no termo aparece como recompensa não é mais que um vislumbre do que se pode esperar se houver perseverança nos perigos.
O mar é o lugar simbólico desses perigos, mas, rigorosamente, não é das vagas que
eles surgem; o barco é seguro e até nem há lugar para demonstração de perícia no manejo do leme ou das velas: os perigos são universais, o lugar é aberto e eles pode sobrevir em qualquer momento… Se esta é a leitura, não menos de sublinhar o contraste com um texto que procede do mesmo meio de origem que a Navegação de Brandão: os Perigos de S. Patrício preferem o registo biográfico18; na Navegação os perigos são estruturantes da própria narrativa. Com a vantagem de garantir a superação: a mensagem não podia ser mais positiva.
Assim, o elemento problemático que é o mar converte-se em elemento positivo: a
experimentação da fidelidade através dos perigos torna-se penhor de méritos e purificação para aceder à Promessa.
Espiritualizado, o mar torna-se elemento de transfiguração. A aproximação torna-se
reconciliação e a reconciliação serve de meio para superação de limitações.
O confronto com o mar, nos componentes que envolve, é quadro de avaliação
humana: a finitude do homem enfrenta a imensidão do mar; o enfrentamento é catártico e o homem tem condições para se abrir ao infinito.
O mar é, enfim, uma possibilidade de linguagem e um modo de sentir o humano. A
água confunde pela sua limpidez, atrai pela possibilidade que apresenta de regenerar, provoca pela capacidade que tem de acolher, torna-se refúgio quando todos os outros meios se mostram inoperantes ou se perderam. Fomentando a distância e abrindo a ela, o mar constrói uma via para o lugar que só o homem pode habitar depois de ter porfiado em lá chegar.
Há afinidades com o mar que em momentos da história se tornaram mais operativas.
Por necessidade ou por consonância. Impossível não reconhecer a cadeia de textos que marcam com o mar expressões específicas da nossa linguagem19. A voz de Sophia de Mello Breyner continua a vibrar connosco e é emblemática de um convívio profundamente sentido com o mar. Sejam delas as palavras que escolho para epílogo, pois nelas se renova a sensibilidade que a personalidade de Brandão pressupõe como proposta para uma aventura de regeneração.
Metade da minha alma é feita de maresia
18 Veja-se fr.wikipedia.org/wiki/Saint_Patrick. São as seguintes as situações contempladas: 1) pecados
de juventude, antes de chegar à Irlanda; 2) captura e servidão – seguida de conversão e oração; 3) fuga da servidão e recolha por um barco; 4) incitamento a adorar os deuses pagãos; 5) fome no barco (tentado a comer da carne dos sacrifícios, resiste); 6) visão nocturna do demónio (vencido pela visão de Cristo); 7) segundo cativeiro, de 60 dias, seguido de libertação miraculosa durante a noite; 8) tentação particular para evitar a missão na Irlanda; 9) incompreensão de familiares e amigos sobre a missão na Irlanda; 10) prisão de 14 dias e confisco de bagagem; 11) martírio dos primeiros convertidos; 12) perseguição demoníaca por pecados da juventude.
19 Aires A. Nascimento, “Dizer o mar em português: da emoção ao empréstimo linguístico”, in
Giornate di Studio di Lessicografia Romanza – Il linguaggio scientifico e técnico (medico, botanico, farmaceutico e nautico) fra Medioevo e Rinascimento (Atti del Convegno internazionale – Pisa, 7-8 novembre 2003), cur. M. Sofia Corradini e Blanca Periñán, Pisa, 2007, Edizioni ETS, pp. 143-171.
O dia branco. (O mar, p. 41) No mar passa de onda em onda repetido O meu nome fantástico e secreto Que só os anjos do vento reconhecem Quando os encontro e perco de repente. (O mar, p. 54) Desde a orla do mar Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim Desde a orla do mar Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotas Enquanto o céu cego de luz bebia o ângulo do seu voo Onde amei com êxtase a cor o peso e a forma necessária das conchas Onde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das ondas E nadei de olhos abertos na transparência das águas Para reconhecer a anémona a rocha o búzio a medusa Para fundar no sal e na pedra o eixo recto Da construção possível […] (O mar, p. 107) Eu me busquei no vento e me encontrei no mar E nunca Um navio da costa se afastou Sem me levar. (O mar, p. 95) Quando se torna necessário buscar a “limpidez da terra”, é então que o mar se
PREAMBULE La phase I du programme d’étude de l’écologie et de l’HAbitat de deux espèces de Requins Côtiers sur la côte Ouest de la Réunion (CHARC) a fait l’objet d’une convention entre la Direction de l'Environnement, de l'Aménagement et du Logement de la Réunion (DEAL) et l’Institut de Recherche pour le Développement (IRD). Il a été convenu que cette phase I qui s'
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