O “PRO-JETO” PEDAGÓGICO EM FOCO: UM ENSAIO SOBRE O DEVIR DA FORMA-AÇÃO
Universidade Estadual Paulista, campus Rio Claro, Brasil
Neste ensaio buscamos, por meio de um estudo bibliográfico, tecer
considerações sobre nossa compreensão de pro-jeto pedagógico e seu
movimento de atualização. A tessitura do texto foi desenvolvida a partir de
um viés filosófico, amparada nas ideias de Héráclito, Aristóteles e
Palavras-chave: Projeto, Atualização, Formação de professores. ABSTRACT
In this paper we expose, through a bibliographic study, considerations about
our understanding of pedagogic pro-ject and its update movement. The text
was constructed from a philosophical perspective, supported by Heraclitus,
Keywords: Project, Update, Teacher Education. O “Pro-jeto” em foco. Por quê?
Com Heidegger (2005), entendemos “projeto” como o que se lança a frente, o que
se pro-jeta, lançando-se às possibilidades do “vir a ser”, de maneira que, a cada
encruzilhada, marcada pelas bifurcações do caminho pelo qual a trajetória daquilo que
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está sendo escolhe um dos rumos possíveis. Este, por sua vez, uma vez tomado, não
permite volta, pois a historicidade que se faz no movimento temporal das ocorrências já
se deu, materializando-se espacialmente nos produtos deixados por essas mesmas
ocorrências. Nesse processo, olhamos para nosso modo de ser mundano e vemo-nos
traçando nosso destino a cada momento vivido.
Por não sermos sós, mas sempre no-mundo-com (HEIDEGGER, 2005), junto a
tudo o que nos circunda, não podemos deixar de perguntar sobre o vir a ser do que está
mais próximo, como de outros seres humanos, plantas, pedras, estrelas, enfim, ao que
nosso olhar1 indagador abarca e, no trilho desse interrogar que, em última instância, nos
marca como humanos, interrogamos pelo que há e por quê há. Heidegger (1969) de
maneira lúcida e complexa coloca essa interrogação primeira como “por que há o ser, e
não antes o nada?”. Esse filósofo, ao dizer de sua compreensão sobre o modo de ser do
ser humano, trabalha com a ideia de “pro-jeto” (HEIDEGGER, 2005), vendo-o como
um feixe de possibilidades que, no movimento de tornar-se, realiza, dentre as
possibilidades possíveis, aquelas escolhidas. Escolhidas de modo existencial, não
necessariamente na dimensão ou no estado de uma escolha consciente, racionalmente
Essa mesma interrogação posta em uma dimensão mais totalizante abarca tudo o
que podemos nos dar conta como sendo, ou seja, que está no movimento de ser e de se
tornar. Nesse percurso de interrogações, encontramo-nos com os primeiros pensadores
da filosofia do mundo ocidental. Ao revisitá-los, destacamos as ideias expressas por eles
que mais nos chamaram a atenção por virem ao encontro de nossas indagações,
levando-nos a manter um diálogo com nossas compreensões.
A incursão, efetuada por nós, pelo pensar dos primeiros filósofos, deu-se por
entendermos que as grandes perguntas sobre o “princípio” foram postas com clareza e
encaminhadas de maneira direta, por aqueles pensadores. Na história do pensamento
ocidental, essas perguntas e encaminhamentos foram retomados conforme as nuanças
que lhes faziam sentido, não de modo repetitivo, é certo, mas olhadas conforme o solo
histórico daqueles autores dispostos a retomá-las. Entretanto, é importante afirmar que
perguntas sobre o ser e o devir sempre são feitas na dimensão do rigor que exigem.
1 Olhar “é um ato pelo qual o horizonte da visibilidade se amplia e o corpo-próprio estabelece contato com o mundo. Trata-se de um tocar à distância, e é nesse ato que nos abrimos à textura do mundo.” (BICUDO, 2003, p.21).
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1.1 Heráclito: um pensador originário
No trajeto de leituras sobre Heráclito2 percebemos que sua doutrina é apresentada
por meio de certas pedras angulares de seu pensamento, as quais são responsáveis pela
grande notoriedade que esse filósofo tem até os dias atuais. Esses destaques, dados
desde mesmo a Antiguidade pelos primeiros a praticar a doxografia, são discutidos e
reinterpretados das mais variadas maneiras, mostrando a valor desse pensador.
Tais ideias basilares não são para serem pensadas isoladamente, uma vez que há
uma interconexão entre elas. Autores como Giovanni Reale (2009), Gerd A. Bornheim
(1991), Marilena Chauí (2002), G. S. Kirk, J. E. Raven e M. Schofield (2008) e Marcus
V. S. Martins (2007), entre outros, trazem, em síntese, as principais ideias de Heráclito.
Para expô-las neste momento recorremos a Martins (2007). De acordo com esse autor,
além da teoria do fluxo perpétuo das coisas, Heráclito pensa “a unidade dos opostos, a
existência de uma regra/medida que serve de base para as mudanças que percebemos, o
conflito como “pai” de todas as coisas e o fogo como elemento primordial (.) uma
ética, uma cosmologia e uma teoria da alma” (MARTINS, 2007, p.59).
Heidegger, entre outros grandes filósofos da contemporaneidade, pensa a palavra
de Heráclito, mostrando a importância desse filósofo primeiro para o desenvolvimento
de toda filosofia ocidental. Heidegger propõe uma apresentação do pensamento de
Heráclito, tentando compreender como esse filósofo pensa e mostrando a riqueza de
suas ideias. Ele traz as questões pelas quais esse grande filósofo ficou conhecido, mas,
no entanto, propõe uma ordem para pensar os (e com os) fragmentos, mostrando, assim,
o modo como ele reinterpreta a palavra de Heráclito, proporcionando-nos uma forma
que adentra pelo pensar primeiro e convidando-nos à reflexão. O estudo heideggeriano
nos trouxe esclarecimentos que leituras anteriores não nos haviam possibilitado.
Heidegger é um dos autores lidos que não se prende somente ao ato de expor os
fragmentos de um modo apenas histórico. Ele procura no ir e vir de seu pensamento, por
meio do estudo dos termos gregos, adentrar o pensar do pensador da maneira mediante a
qual ele entende que ela foi pensada. E são essas compreensões que passamos a
2 Heráclito foi um pensador pré-socrático que se acredita ter vivido entre 540 e 480 a.C. Ele é considerado por Heidegger (2000), juntamente com Anaximandro e Parmênides, um pensador originário por que pensa no âmbito da origem.
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Uma das dificuldades de compreender o pensamento desse grande filósofo, que
também trabalhou a questão do “ser”, tão discutida e pensada por todos os grandes
filósofos ocidentais, se dá pelo caráter obscuro que se atribui ao seu pensamento ou à
maneira pela qual expressa seu pensar. O estilo enigmático de Heráclito fez com que
desde a Antiguidade fosse designado pelo epíteto de “o Obscuro”.
Heidegger nos deixa claro porquê compreender Heráclito segundo essa alcunha.
Primeiramente, segundo ele, o pensamento essencial, ou como ele coloca o “a-se-
pensar”, encontra-se na essência de um encobrimento, em uma obscuridade, de modo
que todo pensamento que simplesmente experimenta um adentrar no encobrimento, no
velamento, já é necessariamente obscuro. E a obscuridade diz de “um modo essencial e
necessário de se encobrir”, de se velar. Nesse sentido, compreendemos que esse modo
essencial não diz de algo necessariamente complexo e enigmático ao nosso
entendimento, apesar de a definição dessa palavra expressar esse sentido, mas de algo
que não se conhece de maneira imediata, por isso encoberto; essa obscuridade diz de
algo que, sendo simples ou complexo, deve ser olhado por nós de maneira atenta, pois
se encontra de algum modo velado - no sentindo de protegido, como que por um véu - e
para trazê-lo à luz da compreensão é preciso tirar-se o véu que impede que se torne
Ao dizer da obscuridade, Heidegger (2000, p.47), afirma que “Heráclito é o
‘obscuro’ porque ele pensa o ser enquanto o que se vela e tem-se que pronunciar a
palavra de acordo com o que assim se pensa”. Ainda, de acordo com a compreensão de
Martins (2007, p.7), que se apoia em Heidegger, Heráclito não deve ser tomado como o
obscuro por algum fator externo a ele ou pelas interpretações que vários filósofos
fizeram, mas ele e sua forma de expressão, sua linguagem, devem ser assim entendidos
por que tal obscuridade “se resguarda à medida que essa [a linguagem] deixa e faz ver o
próprio princípio”. Para Martins (2007), Heráclito recebe essa denominação de obscuro
por ele se manter na dimensão do princípio (da physis3).
Heidegger (2000) traz em sua obra uma história que ilustra porque esse pensador
ficou comumente conhecido como o Obscuro desde a Antiguidade. Tal história além de
cumprir o que objetivamos mostrar pontualmente neste momento, ela nos faz refletir
sobre outros aspectos, também explorados por Heidegger, e que serão discutidos no
3 O significado desse termo será ainda melhor explicitado ao longo do texto.
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Heráclito assim teria respondido aos estranhos vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali permanecem, de pé, (impressionados, sobretudo porque) ele os (ainda hesitantes) encorajou a entrar, pronunciando as seguintes palavras: ‘Mesmo aqui, os deuses também estão presentes. (HEIDEGGER, 2000, p.22)
Quanto ao trazido por Heidegger sobre Heráclito há uma interpretação desse autor
que evidencia outra questão diferente daquela de apenas indicar, como fizemos, o
caráter obscuro pelo qual o pensador se expressa. Quando Heidegger apresenta a
história mencionada, faz referência ao fogo no pensamento de Heráclito. Esse
fragmento diz que Heráclito estava ao lado do forno se aquecendo para proteger-se do
frio e os estranhos que o observavam esperavam encontrá-lo em outra situação, isto é,
no ápice de sua atividade pensante e, por isso, se decepcionaram ao encontrá-lo junto a
um lugar tipicamente cotidiano, comum, ordinário. Mas Heráclito os encoraja a entrar
dizendo: “mesmo aqui os deuses estão presentes”, ou seja, mesmo nessa situação
familiar, nesse lugar comum, corriqueiro e ordinário, “mesmo aqui”, os deuses também
estão presentes. O aparecimento dos deuses, nesse fragmento traz a ideia de que no
ordinário vigora o extraordinário, ou seja, de acordo com Heidegger (2000, p.24), a
essência dos deuses é para os gregos esse aparecimento, “entendido como um olhar a tal
ponto compenetrado no ordinário que, atravessando-o e perpassando-o, é o próprio
extraordinário o que se expõe na dimensão do ordinário”, no inaparente do cotidiano.
Exposto isso, seguiremos nossa trilha trazendo alguns pontos, que acreditamos
serem centrais para a compreensão do pensamento essencial, isto é, primeiro, pontos
esses apresentados e discutidos por Heidegger ao pensar a palavra de Heráclito.
Heidegger (2000) inicia seu pensar sobre o seguinte fragmentos do pensador
Heráclito, que de acordo com a tradução desse filósofo diz: “Como alguém poderia manter-se encoberto face ao que a cada vez já não declina?”. Para ele, esse fragmento
de Heráclito, “pretende tocar o núcleo determinante do que (.) constitui o a-se-pensar
O autor aqui mencionado dialoga exaustivamente com esse fragmento, tomando
outros fragmentos no caminho de sua exposição. Trata-se de um pensamento complexo
e difícil de explicitar o mesmo caminho por ele percorrido. Para evitar cairmos em um
emaranhado de ideias que poderiam fazer com que nossa exposição ficasse sem dizer do
sentido que a leitura fez para nós, tentamos expor aquilo que nos foi fazendo sentido de
maneira sucinta, mas comprometidas com a palavra desses filósofos.
Inicialmente faz-se mister que esclareçamos o sentido de “declinar” para o pensar
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grego, como trazido por Heidegger. Primeiramente, declinar e declínio no dicionário da
língua portuguesa são definidos como: desviar-se do rumo, descer, descair, baixar,
recusar; decadência, aproximação do fim. Esse sentido, conforme Heidegger (2000),
não é aquele pelo qual essa palavra é entendida no pensamento originário. Declinar para
os gregos é “o desaparecer da presença e, na verdade, no modo de sair e penetrar no que
se oculta, ou seja, se encobre” (HEIDEGGER, 2000, p.66). Declinar tem como essência
adentrar o encobrimento, declinar é tornar-se encoberto. Para clarear a questão,
Heidegger coloca que o sentido que deve ser tomado é o do pôr do sol. Mesmo
compreendendo que é uma ilusão de ótica, podemos tomar esse exemplo. O sol ao se
pôr, ao se declinar, não se finda, não se aniquila ou é aniquilado, não vive sua
decadência, uma vez que todos nós sabemos que no outro dia ele volta a brilhar,
surgindo no horizonte. Assim o seu declínio é apenas um adentrar o encobrimento, ele
continua com força e brilho, porém não visível aos nossos sentidos, esperando o instante
em que novamente se dará à nossa presença, que surgirá.
Com referência à segunda parte do fragmento, “o que a cada vez já não declina”, e
pensando a palavra “declinar” com destaque ao sentido de adentrar no encobrimento,
Heidegger (2000) indica que não devemos pensar naquilo que se adentra no
encobrimento, no que se abriga no declínio, mas no próprio declinar. Desse modo, de
acordo com esse autor, estaremos pensando no sentido trazido pelos gregos.
Mas Heidegger (2000) chama a atenção para um fato. Na sentença não é falado
em declinar, o que se diz é um “não declinar”. Heidegger aprofunda sua discussão das
partículas gregas da frase e anuncia outra possibilidade de tradução. Assim, “o que a
cada vez já não declina” poderá ser dito como “o que nunca declina”. Mas o que é que
nunca declina? Aquilo que nunca declina, ou seja, nunca adentra o encobrimento, só
pode estar sempre surgindo, isto é, o que nunca declina está em constante surgimento. E
ao olhar para o fragmento dessa maneira, novamente nos vem à mente a imagem do pôr
do sol e seu constante surgir na manhã do próximo dia. Então, Heidegger diz que o
fragmento de Heráclito, “o que nunca declina”, poderá ser pensado, não mais no sentido
negativo, e sim no positivo como “o surgimento constante, ou seja, incessante”
Tomando esse fragmento dessa maneira, ‘o surgimento incessante’, também
estamos pensando possivelmente à maneira de Heráclito. Em grego surgimento
incessante é dito pela palavra physis, que significa “surgir no sentido de provir do que
se acha escondido, velado e encapsulado” (HEIDEGGER, 2000, p.101). De acordo com
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o mesmo autor, esse surgir torna-se mais compreensível para nós quando pensamos no
surgimento como o processo de brotamento de uma semente; como o nascer do sol. Ele
coloca ainda que se possa pensar esse surgimento como “quando o homem,
concentrando o olhar, surge para si mesmo, como no discurso o mundo surge para o
homem, [.], como o ânimo se desdobra nos gestos [.]” (HEIDEGGER, 2000, p.101).
Em outras palavras, Heidegger coloca que “em toda parte (.) dá-se um vigor recíproco
de todas as ‘essências’, e em tudo isso o aparecimento, no sentido de mostrar-se a partir
de e dentro de si mesmo” e ele diz que isso é physis.
Vigor, etimologicamente, diz da força do corpo, robustez, energia, vitalidade.
Assim entendemos a physis como uma força que faz surgir, aparecer o que se encontra
no encobrimento e é essa mesma força que mantém sendo aquilo que fez surgir,
aparecer. Tal força não é externa àquilo que surge e que impulsiona o aparecer; tal força
motora impulsiona o surgimento de dentro daquilo que surge, ela se dá a partir do que
A palavra physis é, às vezes, traduzida por ‘natureza’ o que leva-nos a uma
compreensão de physis como natureza da maneira que compreendemos e representamos
o que diz essa palavra, restringindo o seu sentido original. Esta palavra, de acordo com
Heidegger não pode ser compreendida como aquilo que denominamos por natureza,
aquilo em meio ao que já muito antes o céu e a terra, o mar e as montanhas, a árvore e o animal, o homem e os deuses surgem e se mostram como o que surge, de maneira a serem chamados de “entes” nessa dimensão. O que para nós aparece como processos da natureza, para os gregos só se torna visível à luz da physis (ϕύσιϛ). (HEIDEGGER, 2000, p.102).
Mas, a experiência do surgimento não pode se encerrar nos exemplos
anteriormente dados para auxiliar a compreensão da physis, como processos da natureza
expostos no surgimento do broto da semente, do nascer do sol, se buscarmos pelos
sentidos expressos no modo de pensar dos gregos. Para compreender a physis
precisamos ir além desses processos que nos auxiliaram a compreendê-la anteriormente.
A physis, o puro surgir, não é uma generalização desses processos da natureza.
Heidegger (2000, p. 103) coloca que o surgimento, o que se mostra a partir do que se
vela e se encobre, é o que “constitui a relação com a ‘luz’, em cuja claridade são
constatadas a coisa ‘semente’ e a coisa ‘broto’ em surgimento, vendo-se, assim, o modo
em que a semente ‘é’ na semeadura, o broto ‘é’ na brotação”. Ou seja, é no surgimento
que se estabelece uma relação com a luz, no sentido de trazer para a claridade o que se
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encontrava velado; é no movimento de surgir que o que surge se mostra e, então, é
Se ela, a physis, faz surgir aquilo que está encoberto, cabe perguntar qual a
relação existente entre o surgimento e o encobrimento? Em outras palavras, como o
declínio, pensando anteriormente, se relaciona com o surgimento, ou com a physis -
agora dita e trazida para a tradução e interpretação do fragmento?
Para Heidegger (2000, p.121), as palavras ‘nunca declinar’ ou ‘sempre surgir’
“constituem as palavras fundamentais do pensamento originário”. Sendo tomado o
sempre surgir ou puro surgir como physis, fica adequado tomar o fragmento de
Heráclito e dizer physis no lugar de ‘nunca declinar’, pois o próprio Heráclito usa essa
palavra em um de seus fragmentos que Heidegger toma como o segundo, para continuar
a explorar o pensamento desse filósofo.
Em tal fragmento a palavra grega ϕύσιϛ – physis – está presente. De acordo com a
tradução de Heidegger (2000) o fragmento é apresentado da seguinte maneira: “o
surgimento favorece o encobrimento” 4. Nessa tradução de Heidegger, é usado o verbo
favorecer, diferentemente de outras traduções que trazem o mesmo verbo grego como
“amar”, “gostar”, “tender”. Mas Heidegger utiliza “favorecer” e explica o motivo,
Olhemos para o fragmento: “o surgimento favorece o encobrimento”. Tal
fragmento nos leva de imediato a interpretar que o surgimento em sua essência pertence
ao encobrimento – mesmo que em um primeiro instante fiquemos imóveis pela possível
contradição que nosso pensamento vê no fragmento, fazendo-nos vê-lo como sem
lógica. Nesse sentido, não se pensa em algo que surge e depois entra em declínio,
desaparecendo, mas que o surgimento já é em si mesmo encobrimento. Aprofundemos e
discutamos um pouco mais essa relação.
Heidegger (2000) coloca que o “favor” é entendido em seu sentido originário, ou
seja, no sentido de propiciar e preservar. Assim, o favor, trazido nesse fragmento, não é
qualquer favorecimento. É um favorecimento que vem como acolhimento. É um
favorecimento que propicia e preserva o que vigora no surgimento. Nas palavras de
Heidegger (2000, p.143) “o favor do surgimento pertence ao encobrimento” e o
4 Em várias traduções esse fragmento aparece de forma diferente: a natureza ama esconder-se; a essência das coisas tem prazer em ocultar-se, entre outras. Tais traduções, de acordo com Heidegger (2000), não cabem ao pensamento de Heráclito, pois natureza enquanto essência, conforme é colocado nas traduções só é possível posteriormente a Platão; logo Heráclito não poderia pensar a physis como natureza ou essência.
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encobrir-se, na relação com o surgir, é um fechar-se. Então fechar está no mesmo
sentido de encobrir. Heidegger (2000, p.143), coloca que: “A fim de vigorar, o
surgimento propicia um fechamento porque a partir de sua “essência” o encobrimento
favorece o surgimento no que ele mesmo é”.
De acordo com as palavras de Heidegger (2000, p.144): “O surgimento propicia o
encobrimento, a fim de que vigore na própria essência do surgimento. O encobrir-se
vigora, no entanto, ao favorecer o surgimento para ‘ser’ surgimento”. Assim temos que
um favorece ao outro e sustentam-se mutuamente, garantindo o vigor de se manterem
sendo, pois a essência do favorecimento é o surgir e o do encobrir-se, o fechar-se.
Surgindo, o surgimento favorece o fechamento, e de tal maneira que este vigora na própria essência do surgimento. Em se fechando, o fechar-se favorece o surgimento de tal maneira que este vigora a partir da própria essência do fechamento. O favor é, aqui, o favorecimento recíproco da garantia que uma essência confere à outra, e na qual se preserva a garantia da essência denominada ϕύσιϛ (physis). Nós, porém, só podemos pensar a ϕύσιϛ a partir da unidade originariamente unificadora do favor (HEIDEGGER, 2000, p.147).
Entendemos que o favor favorece o acontecer das possibilidades “fechadas” na
essência e “abertas” no seu aparecimento. Ele sustenta a relação estabelecida na
De uma maneira mais direta, podemos afirmar que a physis, ou seja, o surgimento
incessante, se relaciona essencialmente com o declínio, isto é, com o adentrar no
velamento, e este, o encobrimento, “cobre justamente liberando o livre e o aberto”
(HEIDEGGER, 2000, p.150). Compreendemos com essa frase que aquilo que adentra
ao encobrimento, que está velado, não está preso e impedido de surgir; compreendemos
que o encobrimento favorece o surgir daquilo que está a todo momento livre para o
próprio surgir. Heidegger lembra que esse encobrir, presente no fragmento de Heráclito
tem o sentido de abrigar, de abrigo, ou seja, abrigar no sentido de proteger, amparar,
guardar, hospedar, albergar, o que nos remete mais ainda ao surgimento daquilo que
está livre e aberto para surgir, somente protegido e abrigado sendo favorecido,
propiciado, preservado para o aparecimento, para o dês-velamento.
Assim, a sentença – o surgimento favorece o encobrimento – traz a compreensão
de que o surgimento ao surgir, sendo favorecido pelo encobrimento, pelo abrigo, vigora
como é e, nesse vigor, a physis “descobre sua origem incessante no favorecimento desse
favor, segundo o qual o surgir já-sempre aparece antes do surgimento de qualquer coisa,
de qualquer ente” (HEIDEGGER, 2000, p.150). Ou seja, olhando a partir do ente, a
physis, sendo ‘não-encobrimento’, já-sempre surgiu. E, quando dizemos que o
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surgimento é encobrimento não se quer dizer que a physis se esconde, se oculta, como
já alertado, mas que enquanto já-sempre surgir, a essência da physis a “revela
precisamente no surgimento enquanto encobrimento” (p.150), sendo este o protetor da
Indo em direção às ideias originárias que nos propusemos compreender, na
tentativa de clarear aquilo que para nós ainda se ocultava, encontramo-nos com o
pensamento de Aristóteles. Por meio de algumas de suas ideias basilares que exporemos
no próximo item, pretendemos lançar luz, favorecendo a compreensão de alguns
aspectos do projeto pedagógico e dos processos de efetivação das ideias presentes nele,
1.2 Aristóteles: potência e ato
O conceito trabalhado por Aristóteles que nos chama a atenção e ao mesmo tempo
dialoga com nossas ideias de projeto e atualização de um projeto, é o de potência e ato.
Tais conceitos estão presentes em sua doutrina e nas maneiras de pensar e definir a sua
Metafísica. É importante já esclarecer que “metafísica” não é um termo cunhado por
Aristóteles para dizer daquilo que é. Porém ele se vale, na mesma acepção de sentido,
dos termos filosofia primeira ou também teologia. Tais definições podem ser assim
sumarizadas, lembrando que há uma relação intrínseca entre elas: Metafísica como a
busca pela causa e princípio das coisas (pela arché), como uma ontologia, como uma
usiologia (substância) e como uma teologia.
Aqui, mesmo compreendendo que as definições de metafísica estão em harmonia,
interessa-nos explorar algumas questões presentes nos modos de compreender a
metafísica segundo Aristóteles. Como já mencionado, das ideias desse filósofo
gostaríamos de destacar o que ele diz sobre potência e ato, conceitos esses que
perpassam as quatro definições de metafísica sumarizadas anteriormente. Vamos à
exploração desses conceitos por meio de algumas das definições de Metafísica5.
Tomemos a primeira definição, a metafísica como a busca pela arché - princípio
ou causa primeira das coisas. De acordo com Reale (2007), Aristóteles afirma que as
5 Das definições que não tratarmos neste item, convidamos aos interessados para lerem Reale (2007), que faz uma leitura das obras de Aristóteles e traz de forma clara e interessante os conceitos significativos à obra desse filósofo. Não trataremos de todas por que nosso objetivo é explicitar o conceito de ato e potência, forma e matéria, pois como já explicitado, com tais conceitos estabelecemos articulações com pro-jeto.
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causas devem ser finitas e assume a existência de quatro “causas”6, as quais já haviam
sido, de acordo com ele, de certo modo anunciadas por seus predecessores. São elas:
causa formal, causa material, causa eficiente e causa final. A duas primeiras causas,
dizem do que constitui todas as coisas, ou seja, a forma/essência e matéria. Explicitemos
A causa formal “é a forma ou essência das cosias” (REALE, 2007, p.33).
Observemos que não estamos falando da coisa em si ou de seus contornos, mas daquilo
que se mostra como essência da coisa, como estruturante. Reale oferece os seguintes
exemplos para elucidar tal causa: “a alma para os animais, as relações formais
determinadas para as diferentes figuras geométricas [.], determinada estrutura para os
diferentes objetos de arte” (REALE, 2007, p.33). A causa material, de acordo com
Reale (2007) é a matéria ou aquilo do que é feito uma coisas. Por exemplo, a matéria de
um animal é a sua carne e seus ossos, a matéria de uma estátua de bronze é o bronze etc.
A causa eficiente é o que faz, gera ou impulsiona a mudança e o movimento das coisas,
por exemplo, o chute em uma bola é a causa eficiente ou motora que gerará o seu
movimento. A causa final constitui o fim das coisas e das ações. Nas palavras de Reale
(2007, p.33), “ela constitui aquilo em vista de que ou em função de que cada coisa é ou
advém; e isso, diz Aristóteles, é o bem de cada coisa”. Essas são as causas ou princípio
das coisas e, de acordo com Reale, o ser e o devir das coisas as exigem, em geral.
Nessa primeira definição chamamos a atenção para o par “matéria e forma”. Aqui
percebemos que a matéria vem impressa de sua forma, seja no exemplo de uma
escultura de bronze ou da estrutura de uma determinada obra de arte. Isso indica que é
na ação, no movimento, que a matéria se transforma, se modifica e por fim, mostra a
forma que possui e que de certo modo foi perseguida. Essa primeira definição, por ser
significativa ao tema propulsor desta pesquisa e por tratar das quatro causas trazidas por
Aristóteles, possibilitando traçar um paralelo com o projeto de formação de professores,
será retomada no próximo item deste capítulo.
Tomando a segunda definição de metafísica, entendida como ontologia, o que é
possível dizer sobre potência e ato? Antes de focarmos nosso objetivo, cabe dizer que
Reale (2007) faz uma explicação sobre o conceito de ser e ser enquanto ser para
Aristóteles, e nesse percurso vai ficando claro por que ele definiu a Metafísica também
6 “[.] para Aristóteles, significam o que funda, o que condiciona, o que estrutura” (REALE, 2007, p.32).
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como uma ontologia7. Buscaremos, sem perda para a compreensão, ir direto às questões
sobre potência e ato que aparecem ao ser definido Metafísica.
Ao caracterizar o “ser” Aristóteles traz seus significados e em uma destas
significações: o ser é tomado como potência e como ato. Ser como potência é o que traz
consigo a capacidade, a potencialidade de realização de algo, de ser algo; ser como ato,
de fato é o que já está aí, sendo efetuado ou sendo realizado. O que isso quer dizer?
Utilizando um exemplo similar ao dado por Reale (2007), dizemos que anda, seja quem
tem a potência para andar, isto é, quem pode andar, mesmo que momentaneamente não
o esteja fazendo por alguma impossibilidade, por exemplo: ter quebrado as pernas; seja
quem anda em ato, isto é, quem está realizando essa ação. Da mesma forma, podemos
dizer que uma semente é uma árvore em potência, enquanto que a árvore adulta é em
ato ou ainda, que um pedaço de madeira é uma escultura em potência e que a escultura
pronta, já entalhada pelo artista, é em ato. Tal significado do ser, como potência e como
ato, de acordo com Reale estende-se aos outros significados de ser8.
Retomemos a questão da matéria e forma, que é trazida também na determinação
de Metafísica como usiologia. Indagar a ousía ou substância é, de acordo com Reale, a
questão mais complexa na compreensão da metafísica aristotélica. A substância pode
ser entendida, de acordo com Aristóteles como a forma, a matéria e o sínolo (composto
de matéria e forma). Esmiucemos um pouco essa definição de substância. Reale (2007,
p.47) ao trabalhar a questão da substância explicita que a forma, já enunciada
anteriormente, deve ser entendida como “a natureza interior das coisas, o que é ou
essência íntima das mesmas”. Assim, como no exemplo dado, a forma ou essência do
homem, por exemplo, é a sua alma, pois é ela que faz dele um ser vivo racional. Forma
é o que define a coisa, ou seja, “quando definimos as coisas, referimo-nos à sua forma
ou essência e, em geral, as coisas só são cognoscíveis na sua essência” (REALE, 2007,
p.47). A matéria, também entendida como substância, é aquilo em que se imprimiu a
forma. Ou seja, a matéria é fundamental, pois a forma precisa dela para se ter a coisa.
Não obstante, a matéria também precisa da forma, pois caso contrário ela seria
indeterminada e não teríamos também a coisa somente com a matéria. Dessa forma, o
7 Resolvemos não nos demorar neste ponto e ir direto ao nosso objetivo, pois explicitar de modo sintético poderia não trazer o entendimento necessário, assim indicamos a leitura de Reale (2007) para o aprofundamento desta questão, bem como da questão da Metafísica como usiologia e como teologia, pois também não nos ateremos à explicitações mais profundas. 8 Não vamos tratar dos outros significados de ser, apenas iremos citá-los: ser no sentido acidental; ser por si; ser como verdadeiro. (REALE, 2007, p.37).
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sínolo, ou composto de matéria e forma, é “a concreta união de forma e matéria”
Ainda na compreensão da metafísica como a indagação da ousía, podemos trazer
a questão da potência e ato. A matéria, explicitada no parágrafo anterior é potência, pois
ela tem potencialidade, ou seja, capacidade de assumir ou receber a forma. Retomando
os exemplos dados, o mármore tem potencialidade de receber a forma que o artista
pensou, ou seja, tal matéria é concreta capacidade de assumir ou receber a forma da
escultura. Como a matéria é potência, a forma “configura-se, ao invés, como ato ou
atuação da capacidade. O sínolo de matéria e forma será, se o considerarmos como tal,
predominantemente ato” (REALE, 2007, p.54).
Assim, fica clara a relação dos pares matéria e forma, potência e ato no pensar de
Aristóteles. Ele coloca, ainda, que o ato tem integral prioridade e superioridade sobre a
potência, pois “não podemos conhecer a potência como tal, senão reportando-a ao ato
do qual é potência. Ademais, o ato (que é forma) é condição, regra e fim da
potencialidade” (REALE, 2007, p.55). Assim, para que o ser em potência seja
conhecido precisamos antes conhecer a forma, a essência daquela matéria, ou seja,
Reale (2007) afirma que a doutrina de potência e ato de Aristóteles é de grande
importância, pois foi por meio dela que esse filósofo pôde resolver as questões
aparentemente sem saídas sobre o devir e o movimento. O autor diz que tais questões,
do devir e do movimento, “correm no álveo do ser, porque não assinalam uma passagem
do não-ser absoluto ao ser, mas do ser em potência ao ser em ato, isto é, do ser ao ser”
Mas, o que é o movimento na doutrina aristotélica?
De acordo com Reale (2007) o devir e o movimento foram negados pelos eleatas e
a partir disso se tornou um problema filosófico. Eles assim o fizeram, pois assumiam a
conjectura da existência de um não-ser, o que para Aristóteles foi um engano, uma vez
que, de acordo com ele, o não-ser não existe de modo algum. Para resolver essa questão
Aristóteles afirma que o movimento é um dado originário e não pode, desse modo, ser
colocado em dúvida. Para explicar definitivamente o movimento, Aristóteles toma o
significado do ser como potência e do ser como ato e afirma que o movimento é a
passagem do ser em potência ao ser em ato. Nas palavras de Reale (2007, p.68):
Com relação ao ser-em-ato, o ser-em-potência pode ser dito não-ser, precisamente não-ser-em-ato; mas é claro que se trata de um não-ser relativo, pois a potência é real , porque é real a capacidade e efetiva possibilidade de
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chegar ao ato. Ora, vindo ao ponto que nos interessa, o movimento ou mudança em geral é, precisamente, a passagem do ser em potência ao ser em ato (o movimento é o ato ou a atuação do que é em potência enquanto tal, diz Aristóteles). Portanto, o movimento não supõe absolutamente o não-ser parmenidiano, porque se desenvolve no álveo do ser e é passagem de ser (potencial) a ser (atual): com isso o movimento perde definitivamente o caráter que podemos denominar nadificante, pelo qual os eleatas acreditavam ser constrangidos a eliminá-lo, e fica fundamentalmente explicado.
Dito isso, resta explicitar que, para Aristóteles, o devir é compreendido, nas
palavras de Reale (2007, p.70), como “a via que leva à plenitude do ser”, ou seja, é o
caminho pelo qual percorrem as coisas para ser o que são de modo pleno, em outras
palavras, para atuar-se, para realizar a sua essência ou sua forma9.
Projeto Pedagógico em foco: elaborando articulações
No intuito de dialogar com as ideias essenciais dos pensadores anteriormente
expostos, buscaremos fazer uma articulação dos modos de pensar desses filósofos e o
entendimento que fomos construindo de Projeto Pedagógico e evidenciando a
compreensão que foi se fazendo para nós nesse caminhar. As articulações tecidas foram
pensadas tendo como fio condutor o projeto pedagógico de forma-ação de professores,
pois estamos imersas nesse campo de investigação, mas cabe enfatizar que elas dizem
de qualquer projeto de forma-ação de um profissional e não somente daquele das
Entendemos ser o projeto pedagógico o que articula, impulsiona, direciona o
trabalho em um curso, tendo em vista a formação do profissional ali pretendido. As
ideias lançadas pelo projeto, no movimento de ações, a serem desenvolvidas, vão
“lapidando” a construção do pensado e projetado. Focando-se o projeto no contexto
educacional escolar, as ações que vão materializando o ali pensado traçam, ao
acontecerem, linhas que indicam a formação de uma pessoa, de um cidadão
especialmente pensado, de um profissional a ser formado de determinado modo.
Ao ser apresentado de maneira articulada e documentado pela escrita, torna-se um
meio pelo qual professores, alunos e demais envolvidos no processo de formação
podem tomar ciência do que fazem, daquilo a que o curso se propõe, de suas
9 “[.] nesse sentido, compreende-se bem por que a physis aristotélica é, em última análise, essa forma” (REALE, 2007, p.70).
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Compreendemos que o projeto pedagógico de um curso é construído em um
contexto ordinário, ou seja, ele é pensado no cotidiano de uma escola/universidade, esta,
No contexto de nossas preocupações e da problemática que estamos a tematizar,
acreditamos que é indo ao encontro do familiar, do rotineiro, corriqueiro, ou seja, do
ordinário e é não buscando perseguir o extravagante, o excitante e o estimulante, que se
abrem as possibilidades de compreendermos aquilo que está velado. É nesse ordinário
que a nossa perplexidade sobre formação de professores se deu e é nele, indo até ele e
nele demorando-nos, que o extraordinário, ou seja, aquilo que não nos é dado tão
visivelmente na ordinariedade do cotidiano, do simplesmente dado, se expõe, vai sendo
trazido para a luz, para a compreensão daquele que intencionado e atento interroga.
Vemos esta questão no mesmo sentido trazido por Heidegger (2000) quando fala
sobre a história de Heráclito, anteriormente transcrita neste artigo: “Mesmo aqui, os
deuses também estão presentes”. Vemos o processo da formação de professores se
realizando nessa dimensão do ordinário, aqui entendido como o contexto em que o
projeto pedagógico de um curso vai, no movimento das ações efetuadas, sendo
O Projeto Pedagógico faz surgir o curso; ele é o vigor imperante que faz o curso
se lançar às possibilidades de ser e de se manter sendo. Juntamente com o projeto,
agregam-se outras formas que também atuam para mantê-lo sendo: a legislação que
ampara e sustenta o projeto e consequentemente o curso, valores e expectativas
daqueles envolvidos na sua proposta, os embates políticos existentes entre aqueles que
vivenciam o curso, políticas públicas que evidenciam a vontade política para dar
sustentabilidade ao curso. Assim, podemos dizer que há uma complexidade de ações
que alimentam a materialização das ideias do projeto, de modo que continuem sendo
efetivadas com força e mantendo o curso com vigor.
Essas forças atuantes no acontecer do curso favorecem a efetivação das ideias
pensadas e presentes no projeto pedagógico, em diferentes modalidades por meio das
atividades desenvolvidas pelo colegiado de professores e alunos. O projeto, sendo o que
se lança a frente, está sempre em movimento de acontecer, em devir, pois uma vez
disparado e efetuadas ações que fazem acontecer o curso, este se materializa em grade
curricular, atividades pedagógicas e administrativas, espaços didático-pedagógicos,
professores, alunos, disciplinas e respectivos conteúdos e metodologias, forças
favoráveis e antagônicas, avaliações internas e externas etc.
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Sendo o projeto o vigor, a força que no movimento de se lançar faz surgir o curso,
pode-se entender o devir do projeto, ou seja, o vir a ser do projeto, como o surgimento
incessante, de que falávamos juntamente com Heráclito e Heidegger. O Projeto é a força
que faz surgir o curso e também é aquela que o mantém sendo, de modo que esse seu
devir, bem como daquele do curso atualiza-se nas ações daqueles envolvidos com o
curso, efetivando as ideias lançadas e materializando, assim, a constituição do
profissional. Dessa maneira, o projeto vai trazendo as ideias, lançando e fazendo
acontecer. Entretanto, como com ele são trazidas possibilidades de ações diversas para a
mesma proposta, o projeto vai sendo criado e repetido no caminhar histórico de um
curso. Ele vai acontecendo nova e novamente, mas, em seu acontecer ele se torna,
carregando consigo toda a experiência do já ocorrido e feito. Compreendemos esse
movimento, que se dá nas e por meio das ações, orientado pelo projeto, tornando atual o
que é trazido como proposta, como o movimento de atualização do projeto pedagógico
e consequentemente, do curso e do profissional projetado.
O projeto, ao mesmo tempo em que surge e se atualiza constantemente, traz
consigo o seu declínio, o seu encobrimento, no momento em que ele é disparado. O que
declina? O que significa esse declinar do projeto pedagógico? Ao falar desse declínio
pensamos nas ideias que geraram e que se materializam na proposta do projeto
pedagógico. Esse processo, da geração à materialização, se apresenta como um produto
que, no movimento da existência, tende a decair. As ideias ao serem lançadas para o
surgimento do curso são abrigadas no próprio projeto. No movimento de atualização
surgem caminhos de ação, tornando as ideias atuais; mas nesse movimento percebemos
também que as ideias iniciais estão abrigadas, protegidas pelo próprio projeto,
independente do modo pelo qual são atualizadas. Mesmo quando se interrompe o curso,
dando, portanto, seu encerramento, o projeto persiste enquanto ideia e enquanto rede de
produtos efetivados (produções artísticas, científicas, didáticas, profissionais formados
que estão em atividade, historicamente, etc.). O projeto protege as ideias essenciais de
como o curso foi pensado, no sentido de abrigar o pensar primeiro para o surgimento do
curso. É um encobrimento que abriga, liberando o livre e o aberto para ser e manter-se
Disparado o projeto, o surgimento do curso favorece o encobrimento das ideias
geradoras, sejam elas as primeiras ou não, no sentido explicitado acima; e, em seu
movimento de ser, sendo, ao vigorar o encobrimento na essência do surgimento do
curso, o surgimento é favorecido. O projeto é o surgir incessante por que se lança
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continuamente no vir a ser dos acontecimentos, da história, sendo no movimento de
atualização sempre vivificado, e desse modo, trazendo a formação do ser-professor, em
O projeto pedagógico de um curso, seja ele de formação de professores ou de
qualquer outro profissional, traz consigo as possibilidades de ser desse profissional.
Assim cabe a pergunta: como essas possibilidades se abrem e se tornam atuais? O que
vislumbramos, pela compreensão que foi se constituindo para e em nós, por meio das
leituras às quais nos endereçamos, e pelo já exposto até o momento, aponta para a
Fomos seguindo um fio condutor e compreendendo que o devir de um curso de
formação de professores está enraizado em uma complexidade em que estão presentes,
pelo menos: a escola, entendida institucionalmente, o projeto pedagógico do curso, as
pessoas que agem, as atividades educacionais elaboradas para convergir em direção ao
proposto no projeto, a necessidade do profissional para a sociedade, a legislação que
ampara o curso, entre outros que poderiam ser pensados. Todos esses aspectos dessa
complexa realidade (a do projeto pedagógico) que se atualiza coadunam em busca da
Mas, mesmo nessa complexidade da qual o projeto pedagógico faz parte, é ele, o
projeto pedagógico, que oferece direções que podem conduzir à materialização do
profissional, ou seja, ele oferece a forma ou essência do curso. Em outras palavras, ele
traça o perfil do curso e consequentemente do profissional ali formado. Ele estabelece e
direciona esse fim, que é a formação de um profissional, entendendo que esse fim não é
um fim enquanto algo finito, mas um fim enquanto escopo desse processo em particular,
pois temos de compreender que essa formação, disparada pelo projeto, continua na
história do indivíduo, da comunidade e da sociedade de diversas formas. Assim, o
projeto traz por meio da sua força, o que é pretendido pelo curso, os objetivos, a
destinação. Projeta as ações a serem desenvolvidas para buscar essa destinação pensada.
Sendo ele a forma, ele molda o curso, é ele que conduz e dá a tônica de todo processo
de formação, fazendo lapidar, pelo movimento de atualização do projeto, o profissional
ali projetado. Porém, sendo “pro-jeto” não fecha uma proposta, mas abre ideias e
possibilidades de escolhas e ações. Estas, por sua vez, traçam o curso, ou seja, o
caminho de atualização e de novas propostas.
Retomando o já anunciado anteriormente sobre os aspectos envolvidos no
processo de formação, podemos nos perguntar: além do projeto, tão enfatizado, de que
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mais é feito um curso de formação de professores? Um curso é feito pelas pessoas que
estão envolvidas nele e que agem. Entre elas, professores, gestores, técnicos e alunos. É
materializado, ainda, por toda estrutura física, técnica, tecnológica e científica que dá
sustentação para as atividades que serão desenvolvidas, pelos livros, laboratórios,
materiais, conteúdos etc. Ainda, pelas ações desenvolvidas por meio das disciplinas,
trabalhos, seminários, estágios, entre diversas outras atividades, pensadas pelo projeto e
efetivadas pelas pessoas. Além de tudo isso, não se pode esquecer que um curso está
também envolto por toda legislação educacional, seja ela da própria universidade ou do
Ministério da Educação. Esse emaranhado de leis regulamenta o funcionamento do
curso, e, também, serve como mecanismo de avaliação de seu funcionamento.
Podemos, na mesma linha de raciocínio já traçado no item anterior, compreender
o projeto como potência e como ato. Como potência por que as ideias trazidas nele são
possíveis de serem atualizadas, elas estão lançadas ao futuro. A atualização do projeto já
o traz como ato, em realização, em acontecimento presente e imediato. Em outras
palavras, pensando que o visado, por exemplo, pelo projeto pedagógico de um curso de
formação de professores seja formar o professor, podemos dizer que o projeto
pedagógico traz o ser-professor em potência, pois ali estão presentes ideias que
antecipam o decorrer de todo o curso e que, disparadas, projetam modos de acontecer
que na união de ações e atividades disponíveis pelo contexto educacional, o projeto vai
se atualizando e materializando essas possibilidades projetadas, ou seja, as ações, os
encaminhamentos que objetivam a formação inicial do professor. Esse é o movimento
de tornar atual o potencial, ou seja, tornar atual o ser-professor. Assim, o projeto
pedagógico traz também o ser-professor em ato, isto é, em movimento, traz a formação
Esse movimento da passagem do ser-professor em potência ao ser-professor em
ato é compreendido por nós como o processo de atualização do projeto pedagógico, e
consequentemente da formação de professores. Ou seja, a atualização, ou o movimento
de um projeto pedagógico, é a passagem do proposto ao efetuado, do projetado ao
realizado, do ser-professor em potência, em capacidade de se tornar, ao ser-professor
em ato propriamente dito, formado legalmente – mas aberto à liberdade, em constante
processo de forma-ação/atualização/movimento, como já mencionado.
Mas, o que está se constituindo nesse movimento, nessa passagem?
Primeiramente, cabe dizer que compreendemos que tudo aquilo que convém e pertence
ao professor, que o faz (se tornar) professor mediante atos que efetivam a potência
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aberta ao próprio acontecer que flui no fluxo do movimento, como a professoralidade
do professor. Assim, respondendo a nossa pergunta, entendemos que o que está se
constituindo no processo de atualização de um projeto pedagógico é a professoralidade
do professor ali em formação. Professoralidade essa que, mesmo não sendo iniciada e
disparada naquele curso em especial, é propulsionada pela formação ali projetada e, esse
mote propulsor, é um dos modos de mantê-la acontecendo, em movimento de se tornar.
Tomando outros exemplos para explicitar a mesma ideia, podemos dizer que, tudo
aquilo que convém e pertence a todas as árvores enquanto árvore é a sua arborescência;
ainda, chamamos de liberdade tudo aquilo que caracteriza e distingui o livre como tal.
Heidegger (2000) diz que se costuma chamar isso de o ‘universal’, o ‘geral’. Heidegger
(2000, p.88) coloca, ainda, que: “na perspectiva do ser dos entes, o ser, o ente, não são
pensados substancialmente, mas verbalmente”. O que isso nos quer dizer? Em nossa
compreensão nos remete ao fato de que só faz sentido pensar a árvore em seu
movimento de se tornar árvore, portanto na ação de ser árvore, em seu sendo, e,
portanto, materializando-se. Materialidade que está ante nosso olhar e que não
permanece para sempre congelada, mas que sempre está em movimento de transformar-
se, segundo as possibilidades que seu percurso e as materialidades dispostas tornam
possíveis. Assim, quando pensamos no modo de ser-professor, pensamos na ação e em
seu movimento de tornar-se professor, em seu sendo. Ação essa que acontece nos
desdobramentos de vivências que, em geral, se dão em um curso de formação de
professores, ou em outras situações, e na vivência e experiência dessa profissão.
Isso se dá apenas no curso de formação? Acreditamos que não, como é possível
ver pelo já exposto. Entendemos que esta formação não se pode precisar começo e fim.
Mas um dos modos de ela vir a ser de modo legal, ou seja, amparada por uma legislação
que busca garantir esse processo, é por meio da formação inicial. Assim, o projeto é, em
nível institucional, o disparador dessa professoralidade. No entanto, como já dissemos,
acreditamos que não comece ou pare por aí, pois assim como ocorre o processo de
atualização do projeto pedagógico, um dos disparadores da professoralidade, ocorre
também a atualização na constituição dessa professoralidade, que é particular de cada
um, porém contextualizada em solo cultural e histórico. Ou seja, no movimento de
atuação profissional, junto com seus pares e demais agentes educativos, ocorre,
também, a atualização do ser-professor e esse movimento vai moldando o que se mostra
como próprio ao profissional ‘professor’, entendendo que esse processo é sempre aberto
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Considerações finais
Para concluir, o projeto pedagógico posto em uma instituição escolar ou
educadora traz consigo a força que impulsiona, que faz surgir e frutificar as ideias e que
sustenta as ações do colegiado que, intencionado, se voltam à formação do profissional.
Assim, como já mencionado, o projeto de um curso de formação de professores traz a
formação do ser-professor potência, ou seja, como força imperante que propulsiona e
mantém o acontecer possível, que pode ser realizada, mas, ao mesmo tempo, traz a
forma-ação do ser-professor em ato pela atualização das ideias ali projetadas. Portanto,
no acontecer dessa formação, ou seja, no movimento de tornar atual o ser-professor se
encontra um dos modos de sua professoralidade ir se constituindo.
Referências
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2007. v. IV (Coleção História da Filosofia Grega e Romana).
REALE, G. Pré-Socráticos e Orfismo. Trad. de M. P. São Paulo: Edições Loyola,
2009. v. I (Coleção História da Filosofia Grega e Romana).
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