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A fome e a miséria nas narrativas jornalísticas: os dispositivos biopolíticos modernos e a valorização do cidadão-consumidor no percurso discursivo da revisa Veja Este artigo analisa a narrativa jornalística em torno da miséria – e, mais precisamente, da fome enquanto sintoma dela decorrente – considerando o discurso jornalístico como um indicador dos modos como a sociedade percebe e catalisa tal questão. O fenômeno social da fome e da miséria é examinado enquanto “dispositivo de poder” no mundo globalizado de fins do século XX e início do XXI. O quadro deplorável no qual se encontram milhões de pessoas configura-se nos paradoxos do capitalismo contemporâneo, que eleva o consumismo como valor moral ao mesmo tempo em que exacerba a exclusão do jogo econômico de grande parte da população. Para sustentar empiricamente essa hipótese, o objeto de pesquisa escolhido compreende as reportagens que tratam dos assuntos fome e miséria, publicadas entre os anos 1968 e 2012 na revista Veja – periódico impresso semanal de maior circulação no Brasil e mais antigo neste segmento. A proposta aqui defendida detecta certa naturalização do persistente problema da fome na sociedade contemporânea, apesar de todos os avanços e conquistas obtidas no campo dos direitos humanos, das liberdades individuais e, inclusive, dos avanços econômicos e tecnocientíficos. Além disso, certos discursos que circulam atualmente mostram que os famintos são responsabilizados por sua própria situação miserável. Ao mesmo tempo, são incluídos nos direitos considerados essenciais, numa tentativa de minimizar sequelas ao estilo de vida apoiado no consumismo e impulsionado pelo movimento dos mercados globais, características do regime batizado por Gilles Deleuze como “sociedades de controle”. Nesta análise, observa-se que, influenciadas pela concepção do Estado do bem-estar social, inicialmente as coberturas trataram a questão sob o prisma político e ético. Com a ascensão do ideário neoliberal, porém, identifica-se que nas duas últimas décadas o periódico priorizou assuntos de interesse dos consumidores-cidadãos da atualidade em detrimento daquelas análises com viés social. Palavras-chave
Imprensa; Miséria; Fome; Biopoder; Sociedade de controle; Revista Veja Em todo o mundo, em torno de um bilhão de pessoas passa fome atualmente. Trata-se de uma parcela significativa da população mundial que vive na pobreza extrema. A existência desse contingente de miseráveis sem condições básicas de sobrevivência impressiona especialmente por existir numa sociedade que reconhece os chamados “direitos humanos” como fundamentais e que registra importantes avanços técnico-científicos que permitem uma ampla produção de alimentos, tendo como consequência, inclusive, a abundância e o desperdício. Esse cenário contraria a polêmica teoria do economista e demógrafo britânico Thomas Malthus, publicada em 1798, na qual ele assegura que a população mundial se expandiria em progressão geométrica enquanto a produção de alimentos aumentaria em progressão aritmética, sendo a fome, portanto, um mal inevitável e em fatal crescimento. Devido ao elevado aumento demográfico do século XX e às crises alimentares mundiais vividas no período pós-guerra, nas décadas de 1960 e 1970, as ideias do economista voltaram à tona na forma de um neomalthusianismo. Porém, rapidamente tais assertivas foram desacreditadas, sobremaneira com a expansão da Revolução Verde. A realidade mostrou-se bastante diferente e, nos dias atuais, o mundo produz até mais alimentos que Para aprofundar esse debate, é importante distinguir alguns conceitos. Pobreza, miséria ou indigência, fome, desnutrição e insegurança alimentar são expressões relacionadas, mas conceitualmente diferentes. A economista Sonia Rocha, em seu livro Pobreza no Brasil: afinal, de que se trata? (2003), destaca a complexidade do fenômeno e, genericamente, define a pobreza como “situação na qual as necessidades não são atendidas de forma adequada” e, ainda, como “não dispor de meios para operar adequadamente no grupo social em que se vive” (2003, pp. 9-10). Quando a renda não permite que sejam supridas as necessidades nutricionais, alcança-se a linha de indigência: a pobreza extrema ou a miséria. Decorrente desse cenário, atinge-se o quadro de fome, entendida como “situação em que uma pessoa ou uma população sofre, de forma duradoura, de insuficiência de alimentação em quantidade e/ou qualidade que lhe forneçam as calorias (energia) e os elementos nutritivos necessários à vida e à saúde do seu organismo”, definição do geógrafo Melhem Adas (2004, p. 15). Para caracterizar a fome enquanto fenômeno social, essa insuficiência deve decorrer da falta de acesso aos alimentos de maneira contínua e satisfatória, em termos energéticos e nutricionais, levando ao quadro de desnutrição: “manifestação de sinais clínicos que provêm da inadequação quantitativa (energia) ou qualitativa (nutrientes) da dieta ou também de doenças que provocam o mau aproveitamento biológico dos alimentos ingeridos” (BELIK, 2003, p. 15). Desse modo, percebe-se a estreita ligação e até mesmo certa confusão conceitual entre pobreza, fome e desnutrição, termos que precisam ser relativizados especialmente no que se refere aos parâmetros adotados em períodos e países diferentes. É importante destacar que a fome conduz à desnutrição, mas nem toda desnutrição resulta da fome; que é possível ser pobre sem ter fome, com a pobreza afetando outras necessidades básicas; e ainda que pode ocorrer a fome sem que seja decorrente da pobreza, mesmo que tal fato seja mais raro, como acontece em guerras, por exemplo. Levando em consideração que a marca de famintos beira um milhão de pessoas no início do século XXI, um questionamento aflora. Com tantos avanços tecnológicos ocorridos no âmbito da produção e, também, uma evidente sensibilização das autoridades internacionais e locais quanto à importância da observação atenta dos direitos humanos de todos os cidadãos, como tolerar a indigência de tanta gente? Tal questão se configura pilar neste artigo e é debatida à luz dos conceitos de animal laborans, elaborado pela filósofa alemã Hannah Arendt em 1958, de biopoder, formulado pelo filósofo francês Michael Foucault na década de 1970, e vida nua, do filósofo italiano Giorgio Agambem, apresentado nos anos 1990. A articulação dessas três noções permite alavancar uma profunda reflexão sobre alguns dos grandes paradoxos do capitalismo contemporâneo. A revolução industrial promoveu o advento de várias tecnologias, especialmente de comunicação, automação, transporte e energia, constituindo a marca do surgimento do capitalismo e — sobretudo, ao longo dos séculos XVIII e XIX — sua consolidação como sistema econômico predominante no planeta em vias de “globalização”. Conforme a célebre análise de Max Weber, o capitalismo promoveu o ideal de respeito à individualidade humana e incentivou a prática empreendedora de cada sujeito, visando ao sucesso na vida terrena por merecimento próprio. Esse quadro estava afinado às ideias protestantes propagadas a partir do século XVI, à “ética” e ao modo de vida delas decorrentes — apoiados, entre outros dogmas, na visão utilitarista e prática da vida, bem como no enaltecimento da riqueza como predestinação à salvação eterna. Os avanços tecnológicos vivenciados na revolução industrial estimularam a atenção à produtividade, bem como às crescentes quantidade e qualidade dos produtos fabricados, fortalecendo o comércio e transformando o mercado numa espécie de arena na qual toda essa produção passou a ser negociada. Nessa zona de transação, precisamente, são identificados os anseios, as tendências e os interesses dos atores; e, nesse contexto, o acúmulo de bens e de capitais se tornou um dos principais motores que impulsionaram esse novo modo de O animal laborans e o consumidor contemporâneo
Esse desejo consumista característico do capitalismo moderno é analisado por Hannah Arendt em seu livro A condição humana, publicado originalmente em 1958. Segundo essa autora, tratar-se-ia de uma transformação dos valores morais, decorrente de uma carência individual de outros sentidos para a vida, que levou a estabelecer uma relação simbólica com os objetos para além de sua finalidade primordial. O sociólogo Colin Campbell (2001, p. 58), por sua vez, no livro A ética romântica e o espírito do consumismo moderno, publicado em 1987, levanta o debate sobre o que ele define como o aspecto mais marcante do consumismo moderno: a insaciabilidade, cujas causas não seriam muito claras. Uma das possíveis hipóteses seria o notório aumento da capacidade produtiva, sobrevindo das fortes inovações realizadas com o advento da revolução industrial, com destaque para a produção em massa, a propaganda e as vendas a crédito (CAMPBELL, 2001, p. 327). Com isso, tornou-se aparente um movimento circular de produção e consumo, bem enfatizado nas palavras de John Lukács que constituem a epígrafe do capítulo “O enigma do consumismo moderno”, no qual Campbell aborda essa notável característica: “no mundo moderno, a produção do consumo se torna mais importante que o consumo da produção” (apud CAMPBELL, 2001, p. 57). Em sua obra, Arendt (2007, p.15) define como vida ativa três atividades primordiais da condição humana: labor, trabalho e ação. O trabalho visa à criação artificial de coisas duráveis, utilitárias, que ultrapassam as vidas individuais. Sua condição humana é a mundanidade e sua filosofia é o utilitarismo sistemático. O trabalho e seu produto “emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano” (ARENDT, 2007, p. 15-16; p. 167). O executor do trabalho é o homo faber, de algum modo livre e autônomo, pois, ao construir o mundo artificial, domina a natureza, é dono de si e de seus atos, o que “não se aplica ao animal laborans, sujeito às necessidades de sua existência, nem ao homem de ação, que sempre depende de seus semelhantes” (ARENDT, 2007, p. 157). A experiência do homo faber concentra-se na noção de instrumentalidade ou de serventia. Para ele e sua proposta utilitária, os fins não só justificam os meios, como produzem e organizam os meios. Sua atuação se dá a partir da questão “para quê”. O labor está relacionado às condições biológicas e de sobrevivência, com a produção de bens de consumo imediato para suprir as necessidades orgânicas. Esses bens de consumo são pouco mundanos e mais naturais, pouco duráveis, porém necessários ao processo da vida. O labor é inerente ao ciclo da vida biológica: para subsistir, é preciso consumir seus produtos, e esse consumo é essencial para gerar a força laboral que, novamente, vai garantir seu sustento. (ARENDT, 2007, p. 107-111) A condição humana do labor é a vida e seu produtor é o animal laborans, sujeito à necessidade da sua própria existência — como os escravos da antiguidade, desprezados por serem obrigados a se submeter aos senhores em troca de sua sobrevivência e, por isso, comparáveis aos “animais domésticos”. Labor e trabalho enfrentam, desde a modernidade e principalmente graças ao capitalismo, certo embaralhamento. Com o gradativo desenvolvimento dos modos de vida sob o capitalismo, os produtos do trabalho se tornaram igualmente “essenciais”, configurando-se um tipo de necessidade que vai além do objeto a ser “consumido”, pois atinge um aspecto imaterial que excede o da mera utilidade. Das três condições acima mencionadas, a ação é considerada por Arendt como a mais humana das atividades, aquela de que resulta do aspecto social dos indivíduos. Realiza-se pelos atos e discursos, produzindo laços entre os indivíduos e possibilitando sua relação com o mundo. Das três, é a única que somente pode existir em sociedade, pois sua característica principal é a pluralidade, condição de toda vida política. Nesta pluralidade, a autora destaca que os seres humanos são diferentes entre si, individualmente, mas são iguais enquanto Na modernidade, o labor teve uma importante promoção, passando da “mais humilde e desprezível posição à mais alta categoria, como a mais estimada de todas as atividades humanas” (ARENDT, 2007, p. 113). Assim, o animal laborans torna-se o principal representante das sociedades de consumo, pois visa à produção de itens que se extinguem rapidamente. Se o homo faber tem como finalidade a produção de objetos úteis, sendo seu produto um fim em si mesmo, na era moderna, o resultado do trabalho — a mais mundana das três atividades — perde seu sentido original e torna-se apenas um meio para atender às necessidades subjetivas (ARENDT, 2007, p. 168-171). A supremacia do animal laborans e seu ideal da abundância sobre o homo faber e seu desejo de durabilidade e utilidade modificou as relações dos indivíduos com os produtos e priorizou o prazer em relação à dor. Seus apetites tornaram-se insaciáveis e passaram a envolver também as frivolidades, transformadas então em essenciais. Com isso, um novo valor foi elevado pelo capitalismo moderno: o consumismo. Na contemporaneidade, o consumidor pode ser comparado ao animal laborans, que vive unicamente preocupado em satisfazer suas necessidades de vida, mesmo que tais necessidades não sejam somente aquelas orgânicas e realmente essenciais à A partir dessa reflexão, podemos deduzir que o animal laborans da contemporaneidade encontra-se bem representado pelo consumidor que faz da obsessão pela felicidade e do desejo insaciável por “superfluidades” o sustentáculo do capitalismo. O animal laborans contemporâneo, cujo fim é ele mesmo, atende essa indústria de produtos descartáveis e consume incessantemente todo tipo de artigo que considera essencial à sua sobrevivência, indo além daqueles relacionados às necessidades concretas mais básicas e buscando modos de consumir também as frivolidades da vida (ARENDT, 2007, p, 138-139; 146-148). Nessa tentativa de sustentar o funcionamento do mercado, aquela parcela da população situada no limiar entre a pobreza e a miséria oscila sua participação na sociedade “laborante”, conforme a conveniência definida pelo jogo econômico, e registra uma situação talvez ainda mais degradante do que a prevista por Arendt na concepção original do conceito de animal laborans. Afinal, essa população, da qual se serve o neoliberalismo para manter sua dinâmica, ora tem seus desejos subjetivos de consumo estimulados — o que pode elevá-la à massa de consumidores, quando necessário — ora é mantida com acesso apenas e nem sempre suficiente às necessidades O neoliberalismo e a estratégia da miserabilidade
Ao estudar as mudanças históricas decorrentes da passagem para o regime capitalista no mundo ocidental, Michael Foucault (2010, pp. 149-150) analisou que, nas sociedades por ele denominadas “soberanas”, o objetivo era monopolizar, mais que organizar a produção; e decidir sobre a morte dos súditos, mais que gerir sua vida. O poder pré-moderno se baseava na violência e na opressão, era capaz de “causar a morte As transformações ocorridas com a ascensão burguesa, a partir do século XVII, provocaram fortes mudanças nos dispositivos de poder, não apenas no nível macro, decorrentes das revoluções democráticas e industriais, mas também no plano micropolítico, apoiado num fator fundamental: a disciplina. Esse modelo, que se estendeu até pelo menos meados do século XX, tinha por objetivo gerir a vida das populações. Um dos polos do poder disciplinar tinha como foco o corpo-espécie, promovendo a imbricação da mecânica do ser vivo com os processos biológicos da população: natalidade e mortalidade, grau de saúde, longevidade, demografia, volume de recursos por habitante, entre outros, inclusive o acesso aos alimentos. Foucault definiu como “biopolíticas” essas medidas que procuravam a intervenção e a regulação das populações, definindo-as como uma consequência da inserção dos fatores biológicos no campo do político (FOUCAULT, 2010, pp. 151-152). Com a gradativa implantação e expansão das biopolíticas, teve início a vigência daquilo que Foucault cunhou como “biopoder”, um tipo de poder organizado em torno das disciplinas do corpo e das regulações da população, que visava atender às necessidades da era industrial e do modo de produção capitalista. (FOUCAULT, 2010, p. 153). Os dispositivos de biopoder desenvolveram um importante papel para a consolidação do capitalismo, um modo de organização sociopolítica e econômica que tem como alicerces primordiais as diferenças sociais, a alta produtividade, o consumo, o acúmulo de bens e riquezas, além da vigilância centralizada. Foucault analisa que as biopolíticas estão intimamente relacionadas à ascensão do liberalismo moderno, cujo princípio fundamental era a não intervenção do Estado na economia e no mercado. Esse modelo passou por fortes crises no início do século XX, motivando o surgimento de outros sistemas políticos e econômicos com viés social. Os novos modelos, porém, também encontraram insucessos e sofreram duras críticas. Destarte, em meados do século passado, configurou-se o neoliberalismo, tendo como princípio regulador os mecanismos de concorrência. Para Foucault (2008, p. 201), o que se pretendia era constituir uma sociedade empresarial, submetida à dinâmica concorrencial e regida pela ética social da empresa. “Trata-se de fazer do mercado, da concorrência e, por conseguinte, da empresa o que poderíamos chamar de poder enformador (sic) da sociedade.” (FOUCAULT, 2008, p. 203) Uma sociedade baseada no modelo da empresa somente é possível se a população estiver acima do limiar da renda considerada mínima, aquela suficiente para garantir a sobrevivência. Explica Foucault que, na faixa entre pobreza – quando ainda é possível consumir – e miséria, permanecerá uma “população flutuante infra e supralimiar”, cuja posição será estrategicamente definida pelas necessidades do jogo econômico. Essa população limiar “constituirá, para uma economia que justamente renunciou ao objetivo do pleno emprego, uma perpétua reserva de mão de obra que se poderá utilizar, se necessário, mas se poderá mandar de volta ao seu estatuto de assistida, se necessário também”. (FOUCAULT, 2008, p. 284) Entre as estratégias biopolíticas do neoliberalismo, está o “imposto negativo”, cunhado pelo modelo norte-americano e criado para que ninguém ficasse fora do jogo econômico: um subsídio em espécie destinado, provisória ou definitivamente, a quem não alcançasse um patamar financeiro suficiente para dele participar. Mesmo sendo características da modernidade, as biopolíticas persistem na contemporaneidade, canalizadas agora por meio dos ideais amplamente difundidos pelo neoliberalismo, uma nova roupagem do liberalismo moderno, como as novas torções do individualismo, a entronização do empreendedorismo e a “inclusão pela exclusão” típica dos “impostos negativos” definidos por Foucault. A vida nua dos famintos
O poder soberano, anterior à instauração moderna do biopoder, também costuma ser de algum modo atualizado nos séculos XX e XXI, principalmente como ocorreu nos campos de concentração nazistas que foram objeto de estudo do filósofo italiano Giorgio Agamben, em sua obra intitulada Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, publicada em 1995. Os refugiados desses campos, onde a exceção se converte na regra, foram classificados por Agamben como homo sacer, um conceito marcado pelo cruzamento da matabilidade do humano e da insacrificabilidade divina. Nesse cenário, a soberania é dada pelo aprisionamento da vida nua, uma forma de vida desprotegida, supérflua e exposta à morte violenta. A existência dos prisioneiros nesses campos é classificada de vida nua, no sentido de que a vida humana opera aí numa fronteira tênue com a vida animal. Seria algo sem valor, quase descartável e que, portanto, pode ser excluído dos valores cidadãos que supostamente vigoram na sociedade como um todo. Cabe lembrar que esse autor aplica suas reflexões à modernidade e, especialmente, aos campos de concentração em que os seres humanos são exterminados como “vida nua”, perigosamente transformada em uma “forma de vida”. No entanto, Agamben (2010, p. 169-170) destaca que se configura virtualmente um campo toda vez que existe uma estrutura “em que a vida nua e a norma entram em um limiar de indistinção” e que o estado de exceção vira a regra. A partir dessa análise, pode-se relacionar o estado de fome e miséria como um campo contemporâneo, mesmo que fisicamente não se restrinja a um espaço fechado. Analogamente, os famintos do século XXI podem ser considerados a versão contemporânea do homo sacer: a “vida nua” dos famintos não recebe proteção, pode ser considerada supérflua e ficar exposta a uma morte violenta, ainda que preserve o caráter divino da insacrificabilidade. Sua morte não pode ser determinada, mas tal acontecimento também não é punido (AGAMBEN, 2010, Para Agamben, a politização da vida converte o ser humano em objeto da política, adotando a “vida nua” como seu referente e estabelecendo uma relação entre democracia e totalitarismo que provoca a perda da clareza nas definições políticas tradicionais (direita e esquerda, liberalismo e totalitarismo, privado e público). A perigosa transformação da “vida nua” em uma “forma de vida” contribui para tornar “invisíveis” na atualidade as situações dos famintos, cuja privação das condições básicas à sobrevivência não é vista como um delito que seria cometido pelo Estado – menos ainda reconhecido como uma responsabilidade do mercado. Por conseguinte, ninguém é culpado por sua eventual morte em decorrência da privação do alimento. Enfatizando a condição homo sacer dos famintos contemporâneos, cabe mencionar a adoção de programas de cunho assistencialista voltados a diminuir certos problemas relacionados ao déficit da capacidade de consumo. No Brasil, especialmente a partir da década de 1990, o governo federal, não importando se da esquerda ou da direita partidárias, já criou diversos auxílios buscando minimizar os impactos da miséria sobre a população, como Bolsa-Escola, Vale-Gás, Fome Zero, Bolsa Família e Brasil Carinhoso, entre outros. Várias prefeituras e governos estaduais também criaram ações A adoção desses programas, enquadrados na estratégia neoliberal do “imposto negativo” analisada por Foucault (2008, pp. 280-284), não costuma causar estranhamento à sociedade. O filósofo ressalta que o imposto negativo serve somente para atenuar os efeitos da pobreza e manter uma segurança na sociedade, mas não tem por objetivo modificar suas causas. É usado para reclassificar os pobres e miseráveis na condição mais conveniente aos mecanismos do jogo econômico. Lembrando a análises de Agamben, nada mais é que excluir pela inclusão. Assim, constata-se o que Foucault já havia analisado no curso Segurança, Território, População: o bom governo se desenvolve calculando-se os níveis aceitáveis de pobreza para evitar distúrbios que Para tentar compreender a tolerância à situação de flagelo de tanta gente nos tempos atuais, a perpetuação dessa vida nua numa sociedade que reconhece e defende os direitos humanos ao mesmo tempo em que dispõe da vida dos miseráveis e famintos para manter a dinâmica econômica do neoliberalismo, este artigo promoveu uma análise das reportagens que abordam a fome e a miséria, publicadas entre os anos 1968 e 2012 na revista Veja. Por meio dessa pesquisa, busca sustentar empiricamente a hipótese de que a fome e a miséria operam como um “dispositivo de poder” e, consequentemente, caracterizam um fenômeno tolerado e naturalizado no mundo globalizado de fins do A revista Veja foi escolhida por ser o semanário de maior circulação no Brasil e mais antigo neste segmento. Tem uma tiragem semanal de 1,2 milhão de exemplares1, enquanto suas concorrentes diretas — Istoé e Época — editam, cada uma, em torno de 400 mil exemplares por semana2. Observando atentamente o periódico, é possível refletir sobre algumas mudanças na problematização desses temas na sociedade contemporânea, particularmente no Brasil. Afinal, a imprensa não apenas é um importante instrumento na formação das opiniões, mas suas reportagens também constituem sintomas dos valores circulantes na sociedade à qual ela se dirige e na qual A arqueologia da fome na revista Veja
Analisar as narrativas jornalísticas de diversos momentos históricos permite perceber as mudanças nos princípios morais e éticos de uma sociedade. Nesta pesquisa, 1 Dados obtidos no site da Editora Abril, cuja fonte citada é o Instituto Verificador de Circulação (IVC), referente <www.publiabril.com.br/marcas/veja/revista/informacoes-gerais>. Acesso em 20jan2013. 2 Dados obtidos no site da Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER), referentes ao período de janeiro a dezembro de 2010. Disponível em <www.aner.org.br/Conteudo/1/artigo42424-1.asp>. Acesso em 20jan2013. como metodologia de análise, adotou-se a articulação sugerida por Foucault entre a dimensão genealógica, desdobrada no início deste artigo, e a dimensão arqueológica, refletindo sobre a problematização do tema pela sociedade. Neste artigo, a problematização está centrada nas práticas discursivas encontradas na revista Veja, que expressam certo pensamento em circulação na sociedade sobre a fome. Roland Barthes já destacara, em seu livro Mitologias, que a imprensa promove e reproduz certos “mitos”, criando sistemas simbólicos sob o argumento de narrar apenas fatos. No entanto, muitas vezes as informações são transmitidas com certa forma “inocente”, o que contribui para propiciar uma percepção dos fatos como se fossem algo natural. Essa naturalidade é alcançada de maneira sutil, por exemplo, com a divulgação dos acontecimentos de forma aparentemente despolitizada, o que, segundo Barthes, dá a eles uma clareza de constatação, e não de explicação, pois assim favorece a aura da normalidade ao mesmo tempo em que dissemina certa “mitologia pequeno-burguesa”. Assim, pode-se avaliar que a eleição das informações que são reportadas, a ordem do relato, a disposição dos elementos nas páginas, o uso das palavras, a seleção das fotos, a escolha das fontes e a definição da ordem dos fatos não são arbitrários, mas refletem certos valores vigentes. Sob essa perspectiva, a proposta deste trabalho é identificar como são construídos os discursos em torno dessa questão ao longo de quarenta e quatro anos, a partir das narrativas que se referem diretamente ao tema e também na opção pelo enfoque em outras questões afins. Para realizar tal investigação, foram observadas todas as capas da revista, desde a edição número 1, publicada em 11 de setembro de 1968, até a edição 2.301, de 26 de dezembro de 2012. As capas das revistas semanais, como avaliaram as pesquisadoras Julia Salgado e Marianna Ferreira Jorge (2012), funcionam como bons indicativos a respeito das prioridades estabelecidas O mapeamento de todo o período de publicação da revista permite perceber a agenda dessa questão na imprensa. Assim, constata-se que até meados da década de 1990, a escolha pela temática social é mais frequente que a partir da virada do século XXI, quando passam a predominar assuntos comportamentais ou relacionados a proposições do cenário político brasileiro. Na pesquisa realizada no arquivo da revista, verifica-se que na década de 1970 tem destaque as matérias sobre inflação e sobre a crise econômica que o país vivia naquele momento. Os impostos também foram prioridade, sobretudo o de renda de pessoa física, criado com o propósito aparente de distribuir a renda. Nesse período, começam a se delinear as narrativas que realçam o animal laborans contemporâneo, dando prioridade ao consumidor com suas questões e seus anseios. Em virtude da crise brasileira, a década de 1980 registra muitas capas sobre desemprego e sobre inflação, nas quais os personagens principais são os cidadãos com alguma capacidade de consumo. Especialmente nas décadas de 1970 e 1980, a revista deu importância ao tema da superpopulação no planeta, assunto que voltou a ser referenciado no final da década de 2000. A violência urbana ocupou fortemente a agenda jornalística no final da década de 1980 e início de 1990, quando ocorreram muitos sequestros a pessoas das classes média e alta. Antes disso, o tema já integrava o repertório do noticiário, porém mais modestamente. Entretanto, o aumento da criminalidade, os altos índices de assaltos, o crescimento das periferias urbanas, o problema do tráfico de drogas e outros assuntos ligados à insegurança das elites foram ganhando mais espaço nas narrativas a partir da década de 1980. Outro assunto que chama a atenção está relacionado ao consumo. Nas décadas de 1970 e 1980, o alvo foi a inflação e as dificuldades que ela acarretava ao consumidor, além da formação da classe média. Depois, o foco se voltou especificamente aos sacrifícios que a burguesia brasileira enfrentava com reduzido poder de compra em consequência dos problemas que o país atravessava. Já no século XXI, o glamour da riqueza e o sonho da ascensão social são usados como chamariz para os leitores, associando a mobilidade e o ideal do animal laborans contemporâneo com a performance individual. A partir da década de 1990 são publicadas muitas capas dedicadas a emprego, profissões em alta e carreira, valorizando a ética empreendedora incentivada pelo neoliberalismo. A década de 2000 é marcada por matérias sobre o crescimento econômico do Brasil, apesar das crises vivenciadas em todo o mundo. Para compor a amostra desta pesquisa, foram selecionadas 23 reportagens de capa. Além dessas, foram escolhidas outras dez matérias que, mesmo não sendo as principais de cada edição, tiveram chamada3 na primeira página da revista. Quanto ao critério para definir a temática do escopo que integrou a análise, os textos coletados têm relação com a questão da miséria e da fome — seja no foco principal, seja como pano de fundo para tratar outros temas — e também abordam os consumidores, o que permite perceber as prioridades das narrativas e dos quadros interpretativos. No que tange à fome como questão mais relevante, as edições que se dedicaram ao assunto quase sempre se ocuparam dos períodos de seca intensa registrados na região Nordeste. Das 3 Uma “chamada” é o texto curto publicado na capa da revista, indicando uma reportagem da edição que merece destaque, mas que não foi a principal e, portanto, não foi objeto de manchete. 23 capas selecionadas, a palavra fome somente é verificada em duas manchetes4: “A fome no mundo”, na edição 323, de 13 de novembro de 1974; e “A fome no Nordeste”, na edição 1.545, de 6 de maio de 1998. Já a desnutrição como grave problema no Brasil foi registrada na manchete “Um milagre chamado comida”, publicada na edição 1.468, de 30 de outubro 1996. O termo miséria também apareceu apenas em dois títulos: “A indústria da miséria”, na edição 1.284, de 21 de abril de 1993; e “Miséria: o grande desafio do Brasil”, edição 1.735, de 23 de janeiro 2002. O escasso número de reportagens que abordam diretamente a questão da fome indica certa “invisibilidade” no que tange a esse assunto, e sugere algumas pistas sobre o que é considerado tolerável e intolerável pela sociedade que está representada na revista. Como a imprensa tem a legitimidade necessária para fazer circular determinados temas e desempenha um papel importante na construção da “realidade”, ao mesmo tempo em que é resultado de uma realidade socialmente construída, esse nível de “invisibilidade” indica a configuração de uma realidade da qual estão excluídos os famintos e miseráveis. Evidencia também o não reconhecimento da fome e da miséria como problemas prioritários a serem resolvidos na sociedade contemporânea, sendo, A partir do material selecionado para pesquisa, em linhas gerais, observamos que nas primeiras três décadas da revista o tema em foco foi tratado como uma questão política. Já a partir da década de 1990, prevalecem as reportagens de abordagem comportamental, relacionadas aos distúrbios alimentares típicos dos cidadãos- consumidores das “sociedades de controle” identificadas por Deleuze, diminuindo o nível de agendamento da questão da fome e apresentando uma aparente despolitização das narrativas. O mesmo panorama é encontrado nas concorrentes Istoé, lançada em 1976, e Época, criada em 1998 — o que indicaria que se trata de uma tendência mais geral, até mesmo para além das revistas semanais e do contexto brasileiro. Até a década de 1980, quando ainda eram fortes as referências ao Estado do bem estar social, as reportagens são marcadas por críticas às autoridades, destacando que o problema persiste por uma falta de vontade política para resolvê-lo, censuras ao uso político da fome, sobretudo nas coberturas referentes às secas da região Nordeste, e repreensões à distinção no tratamento dado pelo governo a ricos e pobres. Para este artigo, foram destacadas as observações referentes às coberturas mais específicas sobre 4 O termo “manchete” define o título principal da capa da revista e indica o tema principal de uma edição. Já a “manchete interna”’ é o assunto mais destacado de uma página. a fome e a miséria, dada a grande quantidade de material analisado, cujos resultados Na primeira reportagem de capa que aborda o problema da fome, publicada em 17 de dezembro de 1969, o tema principal são os dez anos de existência da Sudene, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. A cobertura trata a questão política envolta na criação do órgão e tece diversas críticas, tanto no texto do repórter como em aspas de entrevistados, publicando expressões como “resultados medíocres”, “nada que significasse realmente uma mudança na estrutura do campo”, “não passou de boa intenção”, “a indústria sem as reformas no campo não afastou definitivamente a ameaça da miséria”, “reforma agrária suspeita” e “como acreditar nela, se o presidente da República era o maior latifundiário do país”. Veja desmente alguns argumentos normalmente usados para o insucesso das melhorias e expõe a que seria a verdadeira razão para nada ter mudado: “a concentração do poder político do Nordeste nas mãos dos grandes proprietários de terras”. A manchete “A fome no mundo”, de 13 de novembro de 1974, traz na capa a imagem de uma pessoa macilenta e desnutrida. Internamente, a reportagem tem o título “O mundo sem alimentos”. O drama esquálido e torpe é destacado visualmente, embora com pouco aparato gráfico – algo que se tornou mais habitual no século XXI. O flagelo fica visível e chocante na imagem da criança esquelética no colo da mãe, que revela uma tentativa de mostrar a dura realidade enfrentada pelas vítimas do problema em debate na Conferência Mundial de Alimentação, objeto específico desta cobertura. Neste exemplo fica clara a responsabilização das autoridades pelo problema da fome. No primeiro parágrafo, Veja lança a seguinte assertiva: “Assim, sob a forma de perguntas urgentes, e de novo para espanto ou terror do mundo, o imortal esqueleto do Apocalipse volta a cavalgar verozmente sobre a humanidade”. Expressões como esta não parecem comuns aos textos publicados pela revista no século XXI, tampouco são percebidas atualmente demonstrações de assombro ou choque por parte dos jornalistas. Veja coloca os líderes dos países mais ricos em saia justa, encerrando a primeira parte da reportagem com aspas de um conferencista: “basta deixar o secretário de Estado Henry Kissinger e mais doze ministros de países-chave da Conferência trancados num quarto sem comida, e depois também sem água”, que, então, “uma solução aparecerá”. A edição 619, de 16 de julho de 1980, publicada logo após a primeira visita do Papa João Paulo II ao Brasil, traz a capa “Depois de João Paulo II – O Brasil dos injustiçados”. A reportagem enfatiza o discurso do Papa sobre a fome e destaca a disparidade social enfrentada no Brasil. A verdade, dura e crua, é que o Brasil (.) vai caminhando para bater no fundo do poço como um dos países campeões em disparidade social em todo o mundo – um país que responde apenas com um embaraçado silêncio ao fato de conseguir, ao mesmo tempo, ter hoje a oitava maior economia do ocidente e abrigar 30 milhões de miseráveis absolutos (.). (Revista Veja, 1980, p. 85) Critica o que classifica de “injustiça social”, que seria responsável pela miséria, mas não sinônimo dela: “A pobreza, mais simplesmente, é o resultado da falta de recursos – um deserto pode ser justo, mas será sempre pobre. A injustiça, porém, pressupõe a atuação de um mecanismo perverso da sociedade”. Na década de 1980, começa a haver uma “personalização das vítimas” nas reportagens, com os detalhes de sua vida pessoal preenchendo as reportagens. Isso reforça certa “política da piedade” ao promover a sensibilização da audiência para casos individuais quando se alude a um problema que, na realidade, afeta um coletivo: “os testemunhos têm a função maior de tornar sensível o horror dos eventos” (VAZ; Exemplo disso é percebido na reportagem “Os sertões do nordeste morrem de sede”, referente à manchete da capa “A seca do século”, publicada na edição 654, de 18 de março de 1981. O lide narra a saga de uma família de migrantes que busca um lugar melhor para viver e outros diversos moradores das regiões afetadas são entrevistados. A reportagem condena as ações do governo federal, que não se prepara para a longa estiagem previamente anunciada: “os planos de emergência (.) não parecem avançar com o mesmo apetite exibido pela seca” e “a Sudene acumulou promessas e sonhos sem Um terço da reportagem aborda as questões políticas que impedem as soluções para a fome e a miséria nordestinas. Mostra que os recursos do governo federal são distribuídos não de acordo com a necessidade, mas sim fruto das relações políticas construídas entre as autoridades regionais e o poder central, que beneficia algumas cidades e estados e retalia outros, deixando-os à mercê da natureza. Cobertura similar foi feita na edição 779, de 17 de agosto de 1983, com a manchete “A agonia do Nordeste”. Ao longo de dez páginas, a revista destaca o drama dos flagelados, descrevendo em detalhes suas histórias de vida, relatando minuciosamente sua aparência, narrando os esforços cotidianos por água e comida, as perdas vividas de filhos que morrem pela desnutrição e as impagáveis dívidas contraídas nos armazéns para tentar sobreviver. A “política da piedade” é reforçada pela riqueza de detalhes que contribui para o reconhecimento do sofrimento do outro Ao afirmar que a seca era resultado do “acúmulo secular de miséria e descaminhos”, a reportagem critica o governo, que sempre “faz um programa de Em sua esmagadora maioria, as obras tocadas nas frentes têm por objetivo achar ou guardar água (.) há uma multidão, hoje, dedicada, quase messianicamente, a cavar buracos no Nordeste. Triste é que certamente a maior parte desses buracos não levará a resultado algum, ou será abandonada pela metade – e a Sudene, na próxima seca, será obrigada de novo a recorrer aos 3087 carros-pipa que, hoje, socorrem a região. O problema dos programas de emergência é que carreiam bilhões em recursos para resolver situações de momento, mas não preparam o futuro. (Revista Veja, 1983, p. 58) Nas décadas de 1960 e 1970, as políticas voltadas para o combate à miséria eram tratadas pela revista Veja como sendo bem intencionadas, e as reportagens mostravam as dificuldades enfrentadas pelo poder público para implantar as soluções — embora sem eximi-los de sua porção de culpa. Na década de 1990, porém, as autoridades começam a ser responsabilizadas por sua negligência, acusadas de populismo, falta de vontade e corrupção, como identificaram os pesquisadores Vaz e Rolny (2010), pois se assume que as possíveis soluções não são executadas devido à ineficiência política. Percebe-se, assim, que a imprensa passa a imputar responsabilidades às autoridades públicas na persistência dos problemas da miséria e da fome, mas o foco deixa de ser o aspecto social e passa a ser a temática que afeta os consumidores, especialmente aquela relacionada à segurança. Ainda na década de 1980, muitas edições se dedicaram a acontecimentos violentos, como assaltos e sequestros às classes alta e média. Na virada da década, a temática foi intensificada ao mesmo tempo em que começaram a ganhar espaço reportagens sobre emprego, profissões e carreiras. Com a moldura interpretativa da “explosão dos guetos e favelas”, questão apontada por Deleuze como essencial às “sociedades de controle”, a edição 1.161, de 19 de dezembro de 1990, apresentou “O problema do Brasil”. Esse título, que abriu a reportagem da página 30, foi anunciado na capa com a manchete “Os miseráveis”, acompanhada do subtítulo “Nunca houve tanta gente morando na rua”. A capa personaliza os miseráveis, publicando a foto de “João Maria de Oliveira e sua família, sem casa e sem emprego”, uma imagem em preto e branco que contrasta com o colorido da revista e com o amarelo forte empregado no título. O foco da cobertura é a miséria existente no Brasil, que atinge uma população superior à de toda a França. Uma miséria que não tem mais como ficar oculta, pois os indigentes estão ocupando as ruas das cidades, ficando “tão maciçamente visível no cotidiano do país”. Para presenciar tais cenas, “não é mais preciso passar perto de uma favela, de um cortiço ou de uma área invadida”, pois muitos moram na rua, em todas as partes da cidade, inclusive nas áreas centrais. Trata-se, conforme a revista, de uma gente “miserável demais para viver numa favela, e que vai deixando de ser visto apenas como um incômodo estético para transformar-se numa das mais terríveis condenações do ‘apartheid’ social estabelecido no Brasil”. É a evidência da grande dificuldade apontada por Deleuze (1992), resultante da transformação do capitalismo na passagem do século XX para o XXI, que voltou seu objetivo para o “consumo excessivo”. Como o capitalismo manteve excluída uma grande parcela da população sem recursos para consumir, precisa, agora, encontrar uma As narrativas do início da década de 1990 já colocam em pauta os problemas que afetam especialmente o consumidor-cidadão, mas ainda carregam o traço social e as críticas aos governantes e também à sociedade mais abastada pela exclusão de milhões de brasileiros. Essa posição fica explícita quando a reportagem destaca o agravamento da situação no governo de Fernando Collor, vigente naquele momento, mas estende a responsabilidade às duas décadas anteriores, que já anunciavam um “desastre social de proporções épicas”, decorrente de “políticas, atitudes e decisões que, por parte do governo ou das parcelas da sociedade capazes de influenciar sua conduta, iam grosseiramente excluindo a maioria dos brasileiros da participação nos benefícios do desenvolvimento”. A revista publica, então, exemplos dessa exclusão: dois terços dos financiamentos foram feitos para imóveis voltados às classes média e alta; altas despesas com funcionalismo público; dinheiro público usado para socorrer indústrias, programas militares, “obras faraônicas”, usina nuclear, deixando “uma migalha para a mão de quem necessita de um auxílio urgente”. Paulo Vaz e Gaelle Rolny (2010) analisam que a partir das lutas das “minorias” que marcaram o final do século XX, esses grupos perderam o anonimato e a generalização e passaram a ser qualificados e personalizados. Acompanhando as denúncias de desigualdade como a dessa pauta, as causas são atribuídas “a um Estado ineficiente”, que não consegue cuidar da população em geral nem fazer cumprir a lei. A falta de “acesso” a bens e serviços, ambição das sociedades de controle voltadas ao consumo excessivo, reconfigura alguns parâmetros, como está exemplificado na reportagem. Nas favelas, que já foram “símbolo por excelência de um padrão miserável de vida”, os imóveis atingem valores tão elevados que até eles estão inacessíveis a muitos brasileiros. Com isso, chegou ao fim a “era da casa própria” e se instaurou “uma situação de descenso social”. Uma autoridade entrevistada explica: “Não é mais o pobre brigando para se tornar remediado. Agora é o pobre brigando Os miseráveis que vivem nas ruas — a “classe zero” na denominação utilizada pela reportagem — sequer são contabilizados nas estatísticas brasileiras, enfatiza o texto, pois para entrar na numerologia oficial é preciso ter residência fixa. Como os refugiados dos campos de concentração analisados por Agamben, o homo sacer contemporâneo tem sua vida nua quase descartável, operando numa fronteira tênue com a vida animal. Sem direitos considerados básicos e essenciais, aqueles chamados “direitos humanos”, tal quadro indica um aparente retorno à lógica soberana, porém com as marcas da contemporaneidade. A situação excludente é exacerbada quando a revista relata que o Brasil teve um desempenho econômico “formidável” ao longo de um século e, paradoxalmente a esta sua capacidade de se desenvolver, tem uma “incapacidade de promover um destino melhor aos desamparados”. A reportagem afirma que o cenário é mais grave, pois o país “só tem conseguido crescer produzindo um número cada vez maior de miseráveis”. Reforçando a lógica da exclusão, a revista classifica como “perverso” o fato de que “os 350 bilhões de dólares anuais de PIB (.) não tenham impacto positivo nenhuma na vida de uma quantidade tão grande de cidadãos”. O texto contraria algumas explicações que já imperaram sobre o crescimento da faixa de miseráveis, outrora atribuído “ao atraso geral do país”, ou “ao fato de que sempre há dores no crescimento”, ou ainda “à necessidade de se sacrificar gente em determinadas etapas do desenvolvimento”. Em resposta a isso, a narrativa diz que os miseráveis “são o resultado inevitável da selvageria social que marcou a maior parte desse desenvolvimento”. O que Veja chama de “selvageria social” corresponde a uma das artimanhas neoliberais para instaurar na sociedade o modelo empresarial, como demonstrou Foucault, paradigma que opta por sacrificar uma parcela da população para que sejam atendidas as necessidades do jogo econômico. Na edição 1284, de 21 de abril de 1993, o tema voltou a ter destaque com a manchete “A indústria da miséria: quem ganha com a seca, a fome e a doença”, que realça a corrupção praticada com dinheiro público, evidenciando a ineficiência política característica das reportagens desse período. A matéria foi publicada na gestão do presidente Itamar Franco, sucessor de Fernando Collor, após o processo de impeachment que o tirou do cargo seis meses antes dessa cobertura. Dessa vez, o mote foi a utilização privada de verbas públicas de áreas sociais, insinuando uma espécie de subversão da ordem em regiões dominadas por “estados de exceção”, especialmente no período do mandato do presidente impedido. Da página 16 a 29, a revista mostra, nas retrancas “a indústria da fome” e a “indústria da seca”, como políticos e empresários se beneficiam dos recursos que deveriam atender a população mais carente. A esses, a revista denomina “profissionais da miséria” e os compara ao urubu que circula do alto buscando vidas que agonizam. Entretanto, diferente do “urubu-bicho” que se alimenta da seca, da doença e da fome dos outros, o “urubu-profissional” não “só se alimenta da desgraça alheia como a promove, caça poços para que a pobreza se perpetue”. Entre as denúncias da reportagem estão a construção de poços em fazendas de propriedade de deputados, no Nordeste — três quartos do total de perfurações foi feita em terras particulares —, e a compra de alimentos a preços superfaturados que apodrecem nos depósitos de todo Brasil, enquanto falta merenda nas escolas públicas. Sobre a “indústria da seca”, Veja encerra: Ao contrário da chuva, que cai do céu, a miséria da seca se produz em terra firme e obedece a movimentos consagrados de meteorologia social. Não é por acaso que a lista de beneficiários da água do DNOCS [Departamento Nacional de Obras] está recheada de grandes proprietários e políticos da região. Aos primeiros, interessa o subsídio. Aos outros, interessa ter acesso privilegiado à máquina encarregada de distribuí-lo. A ambos, o que interessa, mesmo, é a manutenção de uma população abandonada a si própria, num cotidiano de desespero, capaz de dar duro como mão-de-obra barata na hora de trabalhar e como curral eleitoral na hora de votar (BOSCO et al, 1993, p. 27). Na edição 1.545, de 6 de maio de 1998, a capa traz a foto de um menino mal vestido, sentado numa casa pobre, com expressão triste e comendo um prato de arroz e feijão, que ilustra a manchete “A fome no Nordeste”. A reportagem começa contando a história da infância de um menino do sertão. Veja, novamente, enfatiza que as autoridades só começam a preparar ajuda para socorrer as populações afetadas quando o problema se torna demasiado grave e ganha espaço no noticiário, embora a seca e a fome sejam recorrentes, regulares e previsíveis. Mas ao final, poupa o poder público e responsabiliza outros setores da sociedade: Não se deve esperar que tenham um final satisfatório cobrando providências apenas do governo federal, o alvo mais visível de quem gosta de apontar o dedo acusador para Brasília sempre que alguma coisa dá muito errado no terreno social. O drama da seca só será resolvido se outros agentes igualmente responsáveis entrarem em ação. A Igreja, por exemplo. Ou melhor, as igrejas. E também as prefeituras, as associações comerciais e as entidades de classe. Toda a sociedade tem de querer acabar com esse velho drama. (PESSOA et al, 1998, p. 33) A partir de 2000, as reportagens que tratam da fome já trazem mais claramente elementos da ética neoliberal. Na edição 1.684, de 24 de janeiro de 2001, a manchete “O cerco da periferia” e o subtítulo “Os bairros de classe média estão sendo espremidos pelo cinturão de pobreza e criminalidade que cresce seis vezes mais que a região central das metrópoles brasileiras” ditam o tom da matéria: a elevada insegurança nas grandes cidades brasileiras, em consequência do aumento da população pobre que vive nas Assim, a ética neoliberal, já bastante circulante na sociedade da virada do século e evidenciada na narrativa jornalística, começa a deixar patente sua preocupação com aqueles a quem já não pode confinar e que não consegue converter em consumidores. Como destacou Gilles Deleuze (1998), as “sociedades de controle” de finais do século XX e início do século XXI precisam manter sob domínio a crescente massa de “excluídos” gerados pelo capitalismo: aquela grande e ainda crescente parcela da população que não tem recursos para consumir. É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas (DELEUZE, 2002, p. 224). Na edição 1.735, de 23 de janeiro de 2002, a manchete “Miséria: o grande desafio do Brasil” é acompanhada do destaque: “A pobreza extrema de 23 milhões de brasileiros é uma tragédia que não pode mais ser ignorada”. A reportagem vai da página 82 até a 93 e seu título principal é “O paradoxo da miséria”. Abaixo dele, lê-se: “O Brasil é o mais rico entre os países com maior número de pessoas miseráveis. Isso torna inexplicável a pobreza extrema de 23 milhões de brasileiros, mas mostra que o problema pode ser atacado com sucesso”. O texto apresenta dados que ilustram as mudanças ocorridas no país nos últimos 25 anos, fala da desigualdade existente no mundo e conclui: “não importa de que ângulo se olhe, o Brasil é hoje o país mais rico do mundo com a maior taxa de pobreza”, assegurando que “a isso se chama injustiça A matéria, publicada em ano de eleição, desafia o novo governo a “reduzir esse contingente de padrão africano”. Acrescenta que o corolário resultante dessa situação é um problema econômico, embora a economia seja indiferente aos miseráveis. Há razões de sobra, além do óbvio constrangimento moral, para tentar de vez minorar esse problema. Do ponto de vista econômico, a pobreza extrema e inelutável reduz a competitividade do país e restringe as possibilidades de mover a economia pela força do mercado interno. Mas a verdade cruel é que, nas contas macroeconômicas, a questão da miséria absoluta é apenas um detalhe. A porção mais pobre da pirâmide, os miseráveis, não produz e não consome. Ou seja, os miseráveis nem entram na equação econômica de um país moderno. Teoricamente, a economia pode muito bem funcionar sem que se leve em conta sua existência (MENDONÇA, 2002, pp. 86-87). A reportagem critica a falta de políticas para acabar com a miséria, destacando a mobilidade social como característica do país – mobilidade esta tratada por Foucault ao falar da ética empresarial que rege a sociedade, escolhendo a cada momento quem sobe e quem desce do limiar da miséria, com o intuito de sustentar o jogo econômico. As bolhas de miseráveis parecem ter paredes de aço no país. Parecem inexpugnáveis. Elas sobrevivem intactas, indiferentes aos progressos que o país experimenta a sua volta. Não regridem sequer diante de fenômenos sociais que em outros países e situações históricas foram decisivos para derrotar a pobreza. Entre esses fenômenos está a mobilidade social. O Brasil é um campeão da especialidade – mas nem isso adiantou para bulir com as estatísticas da pobreza absoluta. (.) A mobilidade social no país está entre uma das mais altas do planeta. (MENDONÇA, 2002, pp. 87-88) A revista destaca a necessidade de melhor distribuição de renda e melhor uso dos recursos voltados aos programas sociais como parte da solução para o problema. A posição da revista, reforçada por dados e entrevistas, naturaliza a prática das biopolíticas. Elenca opiniões contrárias à criação de novos impostos cuja finalidade seria combater a miséria e questiona o uso do dinheiro público na área social, que seria “insuficiente não porque se desvia, mas porque vigora no país um modelo concentrador reforçado pela Constituição de 1988” – modelo este ancorado no Estado do bem-estar social, contrariando a ética neoliberal que vigorou fortemente a partir da década seguinte à promulgação da Carta Magna brasileira. Nas edições mais recentes, é possível observar certas mudanças no viés das coberturas, especialmente no que tange ao assunto aqui focalizado. A edição 2.143, por exemplo, de 16 de dezembro de 2009, publicou a manchete de capa “Estamos devorando o planeta”. A reportagem “Fome de ar, água e comida” é motivada pela conferência United Nations Climate Change (COP15), realizada nesse ano em Copenhague, na Dinamarca, com representantes de 192 países, em busca de uma acordo para conter o ritmo do aquecimento global. Nessa matéria, abundam os recursos visuais, explorando as possibilidades abertas pela difusão das novas tecnologias digitais. A cobertura não explora as tradicionais imagens dos miseráveis famintos e moribundos, embora se refira a tal problema. Isso evidencia certa “limpeza” tipicamente digital que caracteriza as coberturas atuais, diferentemente do que ocorria no século XX. Antes, as reportagens costumavam salientar um lado mais “sujo” e mais aparentemente verossímil. Nessa reportagem, Veja dá ênfase ao problema do crescimento acelerado da população e responsabiliza os países pobres pelos problemas discutidos na conferência: “graças ao sucesso da globalização econômica, a maioria delas [as pessoas] atingirá um padrão de consumo de classe média”. E alerta: “é enorme o impacto da explosão populacional aliado à emergência social e econômica de imensas massas humanas antes fadadas à miséria”. No cenário dessa reportagem, pode-se dizer que houve uma mudança no personagem que ocupa o papel de “vítima virtual” (VAZ;ROLNY, 2010): o sofredor aqui é o consumidor, que tem sua vida feliz ameaçada pela ascensão dos mais Na edição de 19 de maio de 2010, a capa “O milionário mora ao lado” e a reportagem “A receita dos milionários” falam do surgimento de novos milionários originados da classe média. No texto, faz uma crítica ao “senso comum” que credita o aumento da renda de parte da população ao empobrecimento de outra parcela: Os cínicos poderão condenar o aumento do número de milionários no Brasil. Verão nele um jogo de soma zero, sob o prisma equivocado de que ‘o que é ganho por alguém é perdido por outrem’. Esse não passa de um dos enganos típicos do senso comum descritos pelo economista americano Thomas Sowell em seu livro Economic Facts and Fallacies. (BETTI; TSUBOI, 2010, p. 119) A partir do livro citado, Veja publica que esse “pensamento de soma zero” influenciou muitos países no século XX, inclusive o Brasil, o que resultou no “crescimento insustentável, que legou uma economia ineficiente e incapaz de enfrentar a concorrência externa. Sob o dirigismo do capitalismo de estado, o país emergiu mais injusto e desigual”. Além de mudar a narrativa em relação à distribuição da renda, a revista também reforça a ideia do empreendedorismo individual, que emergiu no final do século XX juntamente com a cultura empresarial que valoriza o aspecto emocional como forma de melhorar a performance (FREIRE FILHO, 2011). A revista publica: No passado, a riqueza de uns só podia ser construída a expensas de outros. Não é, em absoluto, o que se vê hoje no país. Diz o economista Marcelo Neri (.): ‘O brasileiro está com mais dinheiro no bolso por causa de seu próprio esforço, beneficiado pela melhora no mercado de trabalho e no aumento do salário real. Esse avanço não se deve simplesmente a fatores como programas sociais, que não trazem um bem-estar efetivo e duradouro’. (BETTI; TSUBOI, 2010, p. 120) Ao analisar as reportagens acima descritas em ordem cronológica, identificamos cenários e problemas que se perpetuam ao longo de quatro décadas. Ao que parece, os critérios de noticiabilidade adotados pela prática jornalística não mudaram da década de 1960 até hoje, porém a forma como eles são tratados acompanha certas tendências da sociedade. Roland Barthes destaca, em seu livro Mitologias, que a imprensa promove e reproduz certos “mitos”, criando sistemas simbólicos sob o argumento de narrar apenas fatos de maneira “inocente”, o que contribui para uma percepção dos acontecimentos como algo natural. Essa naturalidade é alcançada de modo sutil, por exemplo, com a divulgação dos fatos de modo despolitizado, o que, segundo Barthes, dá a eles uma clareza de constatação, e não de explicação, pois assim favorece a aura da normalidade ao tempo em que dissemina certa “mitologia pequeno-burguesa” (BARTHES, 1999, pp. Por meio da análise desse material jornalístico, percebe-se a “naturalização” do persistente problema da fome e da miséria na sociedade contemporânea, que – apesar de todas as conquistas obtidas no campo dos direitos humanos e das liberdades individuais, além dos avanços técnicos e econômicos ocorridos nas últimas décadas – não reage nem toma medidas para solucionar tais mazelas que ainda afetam grande parte da população global. Essa atitude colocaria o miserável faminto contemporâneo em situação análoga ao homo sacer definido por Giorgio Agamben, e evidencia a estratégia biopolítica do acesso aos alimentos. Nas narrativas jornalísticas percebe-se também o triunfo do animal laborans enquanto sujeito consumidor na contemporaneidade, cuja supremacia sobre o homo faber deu-se na modernidade, conforme apontou Arendt. Na análise, é possível perceber também que a lógica neoliberal ocupa fortemente a narrativa jornalística a partir do final do século XX. Assim, em termos políticos, os famintos já não são mais os cidadãos pelos quais o Estado deve responder e dos quais deve cuidar, pois não são consumidores com importância econômica. Considerados fracassados por sua própria culpa, são antagonistas do modelo de sujeito “empreendedor” que toma forma na atualidade. E, além disso, estão também distantes do animal laborans contemporâneo com seu desejo insaciável de consumir todo tipo de As reportagens mais atuais demonstram também uma mudança no “peso ético” do problema da fome, tratado de forma secundária em coberturas sobre o aquecimento global, sobre a violência urbana e sobre a ascensão da classe média. O debate abordado neste artigo permite perceber que as narrativas jornalísticas atuam na “construção da realidade”, mas são também um indício do ideário circulante na sociedade, cujos valores, neste início de século, estão fortemente marcados pela ética neoliberal. Cabe sublinhar que, ao longo da existência da revista Veja, foram encontradas poucas edições nas quais os temas da fome e da miséria foram tratados na matéria de capa da publicação. Em alguns momentos, especialmente quando predominava o ideário do Estado do bem-estar, a revista deu algum destaque para o assunto e em ocasiões até posicionou-se incisivamente em direção da necessidade de encontrar uma solução para o problema. Entretanto, a relativa ausência do tema em certos períodos históricos, sobretudo mais recentemente, revela que a fome — realidade que continua atingindo fortemente os pobres e “excluídos” — não é uma questão relevante na sociedade atual, a ponto de mobilizar os poderes políticos e econômicos em busca de sua eliminação. Após a realização das análises aqui empreendidas, portanto, é possível concluir que os grandes vilões para a fome e a miséria, segundo as reportagens da revista Veja, mudaram nos últimos anos: do descaso das autoridades em relação a um flagelo previsível e insistente, passaram a se localizar na ascensão social dos mais pobres do planeta, um fenômeno que implicaria riscos para o bem-estar dos mais privilegiados. Constata-se também que a pobreza antes era atribuída à falta de compromisso dos governantes, que a capitalizavam como um dispositivo biopolítico para manter a estrutura vigente. Já na passagem para o século XXI, de acordo com as reportagens aqui examinadas, a fome e a miséria converteram-se no resultado de uma incapacidade individual para a gestão da própria vida, fruto de um comportamento pouco empreendedor e arrojado, condições supervalorizadas na contemporaneidade. Assim, a vítima das coberturas do período em que prevalecia a “política da piedade” era o miserável. Já na “política da vítima virtual” que marca as abordagens a partir da década de 1990, essa vítima passou a ser o consumidor, que se vê subitamente sacrificado pela pobreza que o cerca, condicionando suas ações e limitando suas possibilidades. Referências
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